9/22/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 11 – UM FANTASMA EM CASA


Marcos e Cristina estavam tomando café quando Seu Antunes chegou. Veio sorridente, apesar das olheiras. Vestia roupas novas e trazia uma sacola da loja Girassol.
- Um presente para minha nora querida. – disse ele, estendendo o pacote para Cristina.
Meio sem jeito, ela tirou de lá uma bela camisola vermelha, de renda. Não era uma peça recatada, mas sensual.
- Seu Antunes, estou grávida, essa camisola...
- Não diga nada. Sua barriga ainda não cresceu tanto assim e quero que você esteja bem bonita para meu filho. – disse Antunes e piscou para Marcos. Agora vocês vão me dar licença, que vou lavar o rosto...
Cristina ficou apreciando a camisola, sob o olhar de censura do marido.
- Por que essa cara? É só um presente! E você é muito certinho... vai me dizer que está com ciúmes de seu próprio pai!
- Não é isso, é uma espécie de intuição...
Nisso Antunes voltou do banheiro.
- Oh, vejo que tem café...
Cristina concordou com um sorriso:
- Acostumei a passar café para o senhor. Não custa nada.
- Você é um anjo, meu amor. – e deu uma bitoca na testa da nora.
- Agora preciso sair para comprar algumas verduras antes de ir ao trabalho...
- Nada disso. Deixe uma lista que eu compro...
Cristina fez menção de mexer na carteira para tirar dinheiro, mas o sogro recusou, indignado:
- O que é isso? Estou aqui, de favor na casa de vocês e não posso fazer umas compras? Pode deixar a lista que, quando voltar, vai estar tudo aqui...

***
Marcos voltou mais cedo que de costume para casa. Talvez por causa do fiasco da noite passada, não estava muito disposto a fazer uma ronda noturna.
Encontrou Cristina no quarto, enxugando-se com uma toalha e passando creme no corpo. Desde que engravidara, aquele ritual repetia-se diariamente.
- Onde está o meu pai?
- Ele saiu, mas fez as compras e deixou tudo arrumado. Até deu uma ajeitada na casa...
Cristina espalhava lentamente o creme pela barriga já um pouco proeminente, como seu acariciasse o seu bebê.
- Não sei. Eu ainda não consigo confiar nele... – começou Marcos.
- Você ainda está muito abalado com tudo que tem acontecido e não consegue ver o bom homem que é seu pai. Vê como ele é solícito? Não há nada que eu peça a ele que ele não faça...
- É justamente isso. Ele é solícito demais... ninguém faz nada de graça.
- Você está ficando amargo. Onde está o homem com quem eu casei, o homem gentil, que acreditava que todas as pessoas são boas?
Cristina estava de costas para ele e espalhava o creme pelas nádegas. Marcos sentiu um cheiro estranho. Cebola.
- Cristina, você comeu cebola hoje? Salada ou algo assim?
- Não, hoje eu não comi nada com cebola. Não que eu saiba. Por quê?
Marcos respirou fundo. Cebola. E suor. Não era seu próprio suor. Não podia ser de Cristina, que acabara de tomar banho. Ela exalava uma mistura de sabonete, água, xampu e creme. Havia também um outro cheiro... cafeína.
- O que foi? – indagou Cristina.
Marcos não respondeu. Estava parado, olhando à volta, aguçando os ouvidos como um cachorro caçador.
- O que foi? – tornou Cristina.
De repente ele captou um som, como se sintonizasse uma estação ao girar o dial.
Uma respiração.
Marcos girou, avançando na direção do nada e agarrando o ar. O nada respondeu com um som surdo e engasgado.
Por instinto, Cristina cobriu-se com a toalha.
- O que foi? – repetiu ela, apreensiva.
Marcos levantou a mão esquerda e a levou para junto da outra. Seus dedos crisparam-se sobre o vazio e uma veia pulou em seu pescoço.
Usando toda a sua força, ele empurrou as mãos na direção da parede e soltou-as um pouco antes do impacto. Houve um estrondo. Um quadro com uma foto estilhaçou-se e caiu no chão.
Cristina gritou.
- Marcos, o que...
Mas não continuou. Algo começou a surgir entre a parede e o ar. Uma névoa, que foi tomando forma até se transformar em uma pessoa. Antunes.

***

Da mesma forma como surgiu, Antunes foi desaparecendo lentamente, tomado por uma névoa cada vez mais tênue. Em seu lugar ficou apenas o ar.
Cristina percebeu a movimentação de algo que não conseguia ver e seu marido se deslocando rápido para o lado. Algo bateu na porta do banheiro. Marcos avançou para o nada, agarrou algo e o jogou para a sala. Antes de chegar ao chão, o nada havia se transformado novamente em Antunes.
Caído no chão da sala, o sangue escorria de seu nariz.
Marcos agarrou-o pelo colarinho.
- Fale!
Antunes grunhiu.
- Diga que é tudo mentira o que nos contou. Diga você que você abandonou a mim e à minha mãe!
Antunes tentou reagir, mas não conseguia.
- Está bem. É tudo mentira. Eu nunca procurei por você. Eu os abandonei, mas tinha vocês sempre por perto, pois poderia ser conveniente ter um filho...
- Foi assim que me descobriu?
- Sim. Eu passava as noites nas lojas de departamento, mas precisava de um local para passar o dia.
Antunes sorriu, sarcástico.
- Cheguei a entrar aqui invisível, para observar se o local era seguro.
- Você... – disse Cristina, mas levou a mão à boca, antes de terminar, como se fosse uma verdade terrível demais para ser dita.
- Você tem uma mulher gostosa!
Marcos calou-o com um tapa.
- Deixe-me adivinhar. Você passava as noites nas lojas de departamento, roubando. Como estava invisível, os vigias não viam ninguém. Você retirava as etiquetas de segurança e no dia seguinte saía pela porta da frente, certo de que os censores não iriam detectá-lo.
- Você é muito esperto. – zombou Antunes. Descobriu isso sozinho?
- Bem, eu tenho más notícias para você. Eu agora conheço seu cheiro e posso senti-lo mesmo à distância. Nunca mais chegue perto de minha casa e nunca mais faça seus roubos, ou entrego você para a polícia... embalado para presente! Agora saia daqui!
- Eu... não posso sair nu!
Cristina desapareceu no corredor e voltou com as roupas de Antunes. Jogou-as nele e depois cuspiu em sua cara.
Antunes vestiu a roupa e saiu. Seu cheiro fedia a ódio e vingança.

8/06/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 10 – O FANTASMA DA LOJA DE CONVENIÊNCIA


Marcos e Cristina estavam jantando e ouvindo música quando ouvir bater à porta.
Marcos se levantou ainda mastigando um pedaço de ovo frito com farinha e abriu a porta. Havia um homem lá. Era calvo, os cabelos grisalhos. Devia ter uns 50 anos ou mais – talvez mais. Usava uma camisa de manga curta, os botões pressionados, ameaçando estourar sob a pressão da barriga proeminente.
- Quem é, querido? – perguntou Cristina, sem se levantar da mesa.
Marcos ia responder “Não sei”, mas ficou em silêncio, esperando que o estranho se manifestasse.
O homem calvo abriu os braços, como se esperasse um abraço.
- E então? Não reconhece mais o seu pai?
Pai? A palavra ecoou na mente de Marcos. Não se lembrava de um pai. Suas lembranças mais antigas eram dele e sua mãe, juntos e sozinhos. Pai? Todos tinham um pai, claro, ele sabia disso. Sua mãe lhe dera uma explicação qualquer, mas quando cresceu o bastante para pensar no assunto, Marcos percebeu que ele e sua mãe haviam sido abandonados. Pai? Suzana sempre fora mãe e pai para ele. E, de certa forma, ele criara em si mesmo uma parte de sua personalidade que exercia a função de pai.
- Pai?
- Eu te procurei durante anos e finalmente te encontrei, meu filho!
O homem se aproximou e abraço-o. Marcos recuou. Era como ser abraçado por uma lesma. Ou por um sapo.
- Meu filho, que bom poder te abraçar. Te procurei por tanto tempo...
Lá dentro vinha do rádio a voz de Raul Seixas:
“Eu é que não me sento num trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar,
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais no cume calmo do meu olho,
que vê, assenta a sombra sonora de um disco voador”.
Cristina aproximou-se e olhou intrigada para a cena: um homem de meia idade, mas ainda bem conservado, abraçando seu marido, que exibia uma expressão mista de repulsa e timidez.
- Querido, quem é? – perguntou ela.
O homem calvo se aproximou a pegou em sua mão.
- Você deve ser a esposa dele. Puxa, é um prazer imenso. Olhe, você está grávida! Meu nome é Antunes, qual é o seu?
- Cristina, mas...
- Que emoção! Descobrir o filho e saber que vou ser avô...
Marcos estava atônito, sem saber o que fazer. Cristina abriu um sorriso:
- O senhor aceita um copo d’água?
- Um cafezinho, se não for incômodo...
- Se o senhor não se importar de tomar nescafé...
- Imagine! Não sou de cerimônias. Bebo qualquer coisa que tenha cafeína...
- Então sente-se que vou buscar.
Marcos reparou que ele tinha olheiras. “Ele toma café para ficar acordado”. O pensamento pulou de sua cabeça como um daqueles palhaços que saltam de caixas-surpresa.
- Então você... é meu pai... – disse, sentando-se à frente do homem.
- Não sei que história a sua mãe lhe contou. Ela deve ter dito que eu abandonei vocês, mas a verdade é que ela fugiu de mim e levou você junto. Ela sabia que a juíza ia me conceder a posse e não queria se arriscar.
Marcos vasculhou sua mente em busca de fatos que comprovassem isso, mas não encontrou. Aparentemente, ele e sua mãe moraram anos na mesma casa.
- Mas tudo é passado. Você não sabe o quanto estou feliz por encontrar você e sua linda mulher.
Antunes disse isso e sorriu para Cristina, que se aproximava com uma xícara de café fumegante.

* *
O pai de Marcos passou a morar com eles. Ou talvez essa não fosse a palavra mais adequada. A verdade é que ele passava todas as noites na rua. Dizia ser um boêmio, mas devia beber pouco, pois não voltava bêbado. O único sinal de que passara a noite em claro eram as enormes olheiras. E tomava café, muito café, por todo o dia. Dormia uma ou duas horas e estava bom. Precisava de pouco sono, desde que tomasse café.
Marcos também passava boa parte das noites fora. Estava interessado nos roubos às lojas de departamentos. Todas as noites, sobrevoava as lojas, os ouvidos aguçados, à procura de qualquer pista.
Certa noite pensou ouvir algo na loja Girassol. Pousou no teto e procurou uma entrada. Felizmente, havia uma clarabóia. Marcos entrou por ela.
Seus ouvidos captaram sons de passos no departamento de móveis e ele voou para lá a tempo de ver alguém sumindo na direção dos cabides de roupas. Marcos achou que seus sentidos o estavam enganando: o que quer que estava perseguindo não parecia ter braços ou cabeça. Era como se uma camisa vermelha e uma calça jeans tivessem adquirido vida própria e resolvido dar um passeio pela loja.
Era não só estranho, mas irreal e Marcos se perguntou se o fato de seus sentidos serem mais aguçados não o tornaram vítima de uma ilusão de ótica.
Mas e os passos? Ele continuava ouvir passos. Atordoado, Marcos avançou pelo departamento de roupas femininas e encontrou uma camisa vermelha, uma calça jeans e uma cueca jogados ao chão. Era como se as roupas tivessem desistido de seu passeio noturno. Mas os passos... os passos continuavam... para baixo.
Marcos foi até a escada rolante e flutuou até o andar de baixo. Roupas infantis. Ele passava pela seção de saias e vestidos quando foi atingido na nuca por algo. Seus pés despencaram no ar e sua cabeça bateu no chão.
- Quem está aí? Eu estou armado e vou atirar! – gritaram, ao longe.
É o vigia, pensou Marcos em meio à vertigem. Cambaleando, ele se elevou no ar e alcançou o andar de cima. Abaixo dele, o vigia avançava, barulhento como uma manada de elefantes. Não se parecia em nada com os passos sutis que ouvira anteriormente.
Apesar de estar flutuando, Marcos bateu o pé na quina de uma cômoda e desabou. O instinto o fez flutuar a poucos centímetros do solo, evitando um novo hematoma. Mas os sentidos continuavam estranhos e misturavam-se a uma perturbadora ânsia de vômito.
- Quem está aí? – gritou o vigia, já mais próximo.
Onde estava a saída? As imagens turvas misturavam-se com as lembranças das roupas andarilhas. Em seu delírio, Marcos imaginou que estava sendo perseguido por um batalhão de roupas sem corpo. Macacões rosas e botinhas ortopédicas misturavam-se a conjuntos de praia e ternos sociais, subindo pelas escadas, tentando alcançá-lo.
Marcos sacudiu a cabeça, tentando afastar os fantasmas e concentrar-se na saída.
- Estou avisando! Entregue-se ou vou atirar!
Marcos subiu pela clarabóia quando o primeiro tiro grunhiu abaixo dele. Pensou em ficar alguns momentos no telhado, recuperando-se, mas achou arriscado e voou sem rumo, rezando para não ser visto. Finalmente pousou no telhado de um prédio e ficou lá por quase meia-hora.

5/28/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 9 – O HOMEM QUE SABIA DEMAIS

Érico era uma dessas pessoas que chamavam atenção por sua total ausência de predicados. Pequeno e magro, não havia nada em sua aparência que pudesse parecer um atrativo para as mulheres. Entretanto, ele se dava bem com elas. Tinha uma lábia, um carisma especial que parecia enfeitiçá-las.
Naquela noite, por exemplo, ele estava acompanhado por dois belos exemplares do sexo feminino: uma garota morena de cabelos anelados e longos, seios grandes e lábios carnudos. A outra era igualmente bonita. Tinha o cabelo liso, pintado de ruivo, cortado à Chanel. A pele era branca, muito branca e macia e pequenas sardas se avolumavam em seu peito. O trio chamava atenção pelo inusitado do contraste: ele baixo e inexpressivo, elas altas e exuberantes.
Ficaram lá por um bom tempo e já era alta madrugada quando resolveram ir embora.
Havia dois homens esperando por eles do lado de fora. Ambos musculosos, os trícepes tatuados em motivos tribais. O mais baixo deles assoviou para as meninas:
- Ei, gostosas!
Como nem elas, nem seu companheiro parecessem dar atenção, ele repetiu a frase, numa entonação mais agressiva.
Érico parou e olhou-o.
- O que foi, rapaz? Não gostou? Talvez queira brigar comigo...
- Não vejo motivo para brigar com você, mas aconselho-o a ser mais educado com as mulheres. Já conquistou alguma assim?
- Você está me chamando de otário?
Érico olhou para cima, como que clamando por ajuda.
- Eu não o chamei de nada, apenas dei uma sugestão. Minhas sugestões são valiosas. Se eu fosse você, aproveitaria.
- Tu é muito engraçadinho! Vou quebrar as tuas fuças. – ameaçou o outro.
- Você quer provar que é macho batendo em alguém muito mais fraco que você? É isso? Talvez as meninas gostem de ver o quanto você é macho batendo em um cara como eu...
- Se tu é macho, vem brigar comigo!
O rapaz dava pequenos pulinhos ameaçadores, como se estivesse num ringue e desferia pequenos golpes no ar. Alguns chegavam muito próximos de Érico, que, no entanto, permanecia impassível.
- Não acho que minha masculinidade possa ser testada em uma contenda desse tipo. Sinto decepcioná-lo. Meninas, vamos embora.
Os três se viraram e já iam se afastando quando o outro se adiantou e colocou-se à frente deles.
- Você não vai sair assim, depois de ter tirado sarro de mim.
- Ei, Bad Boy, deixa o rapaz em paz. Ele não quer briga. – interveio o rapaz mais alto e forte.
- Não, Panturrilha. Hoje ele só sai daqui numa ambulância!
- Sim, talvez você resolva me bater. Mas talvez, se você fizer isso, e é apenas uma conjectura, talvez amanhã você esteja morto.
- O que tu quer dizer com isso?
- Quero dizer que talvez eu saiba onde você compra seu açaí... talvez eu saiba onde você faz musculação...
- E daí?
- E daí que existem venenos incolores e inodoros.
- Inodoros? Que merda é essa?
- Quer dizer que você só vai sentir o gosto quando estiver morto...
- Tu tá me ameaçando? Eu vou te matar e vamos ver o que você vai fazer no caixão.
- Sim, talvez eu, estando morto, não possa fazer nada. Mas talvez eu já tenha deixado tudo pronto para que você me faça companhia no cemitério. Você jamais teria paz, sabendo que a qualquer momento algo poderia lhe acontecer. Poderia ser alguém que derrubasse você na frente de um carro. Ou poderia ser, vamos ver... talvez um choque elétrico quando você estivesse tomando banho. Eu gostaria disso. Você conseguiria dormir com essa dúvida? Conseguiria, Júlio?
- Ei, como você sabe meu nome?
- Bad Boy, vamos embora. – insistiu o outro.
- Como você sabe meu nome? – o rapaz insistiu. Havia já alguma apreensão em sua fala.
- Talvez eu só tenha chutado. Ou talvez eu saiba não só o seu nome, mas a hora em que você sai de casa, onde você estuda, o que você gosta de comer. Talvez eu até saiba sobre vocês dois...
Bad Boy e Panturrilha se entreolharam, nervosos.
- Quem te disse isso, quem mais sabe?
- Talvez a mesma pessoa que me disse que seu nome é Júlio Augusto Pereira.
- Talvez a mesma pessoa que me disse que seu amigo se chama Rodrigo. Talvez a mesma pessoa que me disse onde vocês costumam se encontrar...
- Eu vou quebrar as tuas fuças! – berrou Bad Boy.
- Espera, como ele sabe dessas coisas? Ninguém mais sabe. Cara, eu não estou gostando disso, é melhor a gente ir embora...
Érico olhava e ria com o canto dos lábios. Apesar de menor e muito mais magro, ele parecia olhar para os dois de cima para baixo.
- Talvez eu saiba exatamente o que fazem e como seria a melhor forma de matá-los. Rodrigo, talvez você se lembre de um dia, você devia ter uns 6 anos, acho. Creio que havia uma geladeira enferrujada...
- Pára! Bad Boy, vamos embora, pelo amor de Deus!
- Vamos, vão em frente, me batam. Eu adoraria matá-los. Veneno, talvez. Ou talvez uma doença infecciosa. Oh, sim, isso seria melhor. Bastaria infectar um dos dois... muito mais prático. Tenho más notícias para você, meu amigo: eu sei o creme dental que usam, sei a marca de seu desodorante, sei que você sempre gargareja antisséptico bucal antes de dormir e que seu amiguinho aí lava as mãos com álcool ante de comer. Sei que você está fazendo um tratamento de canal em um molar, sei que você tem hora marcada com o dentista amanhã à tarde. Ei, vocês estão pálidos! Vamos, sigam em frente. Mostrem o quanto são machos!
Os dois pareciam estar tremendo. Foram reveladas coisas sobre eles que poucas pessoas sabiam. Panturrilha deu dois passos para trás e puxou o amigo, que não ofereceu resistência. Logo os dois estavam correndo como se tivessem visto lobos.
- Bem, meninas, vejam dois belos exemplos do sexo masculino...Agora, venha comigo. A noite ainda é uma criança...

5/07/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 8 – ONDINA


Eu a peguei nos braços e a levei para a área portuária. Enquanto voávamos, seus cabelos ondulavam como maresia.
Ficamos sentados na beira do rio, observando a água bater contra o muro de sustentação.
- Como começou? – perguntei, depois de um longo e constrangedor silêncio.
Ela me olhou com olhos marejados.
- Eu me casei muito jovem. Tinha 17 anos. Estava grávida e era a única saída que tinha. No começo, meu marido era carinhoso comigo, mas com o tempo algo mudou. Ele voltava do trabalho cada vez mais tarde e cada vez mais cheirando a álcool. Um dia reclamei... e ele me bateu.
Lágrimas inundaram seu rosto. Ela enxugou as lágrimas e continuou.
- Eu perdi a criança. Depois disso, o nosso relacionamento nunca mais foi o mesmo. Eu tinha asco dele e o culpava pela morte de minha filha. Um dia ele tentou me violentar. Eu o empurrei e ele bateu a cabeça na parede. Nunca o vi tão fora de si. Se eu fechar os olhos, consigo visualiza-lo, seus olhos vermelhos, posso sentir seu bafo de cachaça, sua respiração ofegante...lembro de sua voz rouca, dizendo que eu iria pagar... ele foi até a cozinha e eu ouvi barulho de vidro. Quando voltou, trazia na mão uma garrafa partida. Ele ia me matar, cortar minha garganta com vidro e ficaria ao meu lado, me olhando e vendo a vida se esvair do meu corpo...
Novo silêncio. Ela engolia em seco, agora segurando as lágrimas. Olhou algum tempo para as águas antes de começar a falar. Seu olhar agora era determinado como a preamar.
- Por alguma razão eu achei que deveria morrer cantando. Talvez fosse uma demonstração de força, ou um grito de desespero, mas o fato é que eu cantei. Cantei com todo o meu coração. Algo estranho aconteceu, então. Sua mão parou a meio caminho de minha garganta. Ficou naquela posição por horas, até a polícia invadir o apartamento. Eles me encontraram encolhida em um canto, murmurando melodias. Meu marido não conseguia nem mesmo falar. Foi levado para um hospício e, se Deus quiser, vai morrer lá.
- E com você? Como você se saiu?
- Foram os piores e os melhores anos de minha vida. Eu estava sozinha no mundo, sem marido ou família, pois não queria voltar para meus pais. No começo foi bem difícil para uma moça inexperiente como eu arranjar emprego, mas consegui e voltei para a escola. Com muito esforço, passei no vestibular e arranjei um emprego melhor. Quando achei que minha vida estava encaminhada, comecei a pensar nas outras mulheres que sofriam como eu. Sabe, quando tive o aborto, todos no hospital, médicos e enfermeiros, sabiam que eu havia sido espancada, mas ninguém fez nada. Eu queria fazer a diferença, queria fazer alguma coisa por essas mulheres esquecidas e sozinhas...
- Então começou a fazer a ronda noturna?
- Sim.
Continuamos conversando por um bom tempo e eu lhe contei sobre minha vida. Depois me ofereci para leva-la para casa, mas ela recusou. Queria aproveitar a caminhada até casa para fazer uma ronda.
Cristina estava dormindo quando cheguei em casa. Eu beijei sua barriga e deitei ao seu lado, mas não consegui dormir. Sonhei com a mulher de cabelos dourados.

4/30/2006



OS ANJOS
EPISÓDIO 7 – A MULHER DE CABELOS DOURADOS

“Tem gente que canta procurando Deus
Tem gente que recebe Deus quando canta”
Cazuza

Eu estava perseguindo três ladrões. Eles haviam surrupiado a bolsa de uma senhora idosa e, como ela resistia, a teriam espancado até a morte se eu não aparecesse. Com o tempo descobri que ver alguém descer do céu, em meio às sombras, pode ser uma visão aterradora o bastante para fazer correr uma trinca de criminosos e foi isso que aconteceu naquela noite.
O ato de voar era, inevitavelmente, ligado a algo sobrenatural e, se para alguns eu era um anjo, para outros eu, vestindo um capote, o rosto encoberto por um capuz, parecia-me mais com um demônio.
Os assaltante correram desajeitadamente, ao mesmo tempo que jogavam para trás a bolsa, como se ela queimasse em suas mãos.
Eu acompanhava dos céus sua fuga inútil, embora estivesse preocupado com a possibilidade de não conseguir pegar os três. Quando eles entraram em um beco, eu me senti tranqüilizado, pois agora eles dificilmente me escapariam. Além disso, naquele local estreito, os três não poderiam me atacar ao mesmo tempo. Era o lugar ideal para abordá-los, mas quando me aproximei, vi algo fantástico: eles estavam parados, como que congelados. Do outro lado do beco, havia uma mulher cantando.
Tinha longos cabelos cacheados de cor dourada e eles eram como conchas deslizando num mar de ondas. Os olhos eram grandes, profundos, ressaltados por sobrancelhas grossas. Os lábios, vermelhos e grandes, moviam-se e deles saiam sons que eram como o bater de ondas nas rochas ou o murmúrio instável do rio enchendo e vazando. Sua voz tinha o gosto reconfortante da água de poço e ao mesmo tempo era arenosa como a água do mar e tinha o aroma suave do orvalho sobre as plantas em uma manhã na floresta. Suas canções falavam de barcos perdidos, de mães chorosas, da lágrima de uma menina, da saliva de duas mulheres se beijando.
De repente, percebi que estava sendo hipnotizado e despertei, assustado. Eu quase despencara de cima do prédio. Olhei para baixo e vi os três homens chorando como se estivessem em seus próprios enterros. Eles ficariam ali por horas ou dias, como carpideiras de si mesmos.
Virei o rosto para o outro lado e percebi que a mulher havia desaparecido. Contornei o prédio e sobrevoei a rua, procurando a moça de cabelos cacheados, mas ela havia desaparecido.

* * *
No dia seguinte, após o trabalho, fui à biblioteca. Pedi os jornais do último mês, todos os três: a Gazeta Popular, A Folha de Santa e Helena e O Tribuno.
Examinei atentamente as notícias, concentrando-me nas páginas policiais. Havia alguma coisa sobre O Anjo e seu sorri ao ler isso, entre envergonhado e orgulhoso.
Fora isso, havia uma matéria sobre como haviam aumentado os roubos nas lojas de departamentos. Nem mesmo o sistema de segurança estava conseguindo diminuir os furtos, pois o bandido, misteriosamente, retirava as etiquetas das roupas e objetos e simplesmente saía com eles. Havia uma declaração de um gerente segundo o qual era impossível retirar as etiquetas sem o equipamento específico, que só existia nos caixas. Era como se os roubos estivessem sendo feitos por um fantasma.
Mas não era isso que eu estava procurando. Depois de muita procura, achei uma matéria sobre dois ladrões que haviam dormido enquanto tentavam violentar uma vítima.
Era essa a pista!
Encontrei mais três matérias sobre ladrões que haviam sido presos em atitudes estranhas. Um deles estava rindo, o outro catatônico, o outro chorava. Um marido que espancava a esposa foi encontrado tremendo de medo.
Eu a ouvira e sabia que ela podia provocar reações assim em qualquer um que a ouvisse cantar. Não havia relatos da mulher porque todos estavam perturbados demais para identificar quem quer que fosse, mas uma mulher que morava perto de onde acontecera um dos fatos declarou que ouvira uma estranha canção.
Havia algo em comum em todos os casos: as vítimas eram sempre mulheres!

* * *
As informações colhidas na biblioteca foram bastante úteis. A partir daquele dia, em minhas rondas noturnas, passei a dar mais atenção para crimes contra mulheres.
Foi no terceiro dia que a encontrei.
Uma mulher saíra gritando de um cortiço e um homem corria atrás dela, uma faca na mão direita. A mulher caiu e ia ser esfaqueada quando a cantora de cabelos dourados apareceu. Eu estava alto demais para ouvir detalhes da música que cantava, mas pude ver quando o homem largou a faca, levou a mão ao rosto, como se estivesse repleto de vergonha e caiu no chão, tremendo.
A sereia afastou-se, dobrando uma esquina e me encontrou. Ela assustou-se e abriu a boca para iniciar uma canção.
- Não, por favor. – pedi. Não sou inimigo.
Ela não cantou, mas olhou desconfiada para mim, a boca entreaberta como quem segura um revólver destravado.
- Sou como você. – disse Marcos. Sou um anjo.

4/22/2006


MAÍRA – A GUERREIRA AMAZONA
Episódio 3 – O diário de Sir Burton


Maíra percorria em silêncio os corredores do palácio. Provavelmente nunca se acostumaria com a grandiosidade do local.
Algumas amazonas passavam por ela e a cumprimentavam. Além de ser filha adotiva da rainha, a garota ganhara o respeito das outras graças ao sucesso de sua última missão.
Os corredores pareciam formar um labirinto no qual qualquer um poderia se perder. E, a cada vez que os percorria, Maíra encontrava salas que não conhecia. Dessa vez, não foi diferente. Maíra deparou-se com o que parecia ser uma biblioteca. Livros, em sua maioria muito antigos, avolumavam-se nas paredes laterais.
A garota aproximou-se de uma estante e retirou um livro a esmo. Era um pequeno volume encadernado em couro. Tinha o formato estreito, como se tivesse sido feito para ser colocado no bolso.
Maíra abriu e viu que se tratava de uma espécie de diário, escrito a lápis.
- Olá, menina.
Maíra pulou de susto. Era sua mãe adotiva, a rainha.
- Não, não se assuste. Está tudo bem. Você, sendo minha filha, tem direito de conhecer alguns segredos. Lembra-se que uma vez você me perguntou se algum homem branco já havia entrado na cidade das amazonas?
- Sim. – recordou Maíra.
- Um único homem branco penetrou por nossos portões. Sua história está contada nesse diário.
- Posso ler?
- Pode. Fique à vontade.
Maíra sentou-se em uma cadeira, apoiou o livro na mesa de mármore e mergulhou na leitura.


DIÁRIO DE SIR. RICHARD BURTON

A lenda das amazonas é uma das mais antigas do mundo. Remonta aos antigos gregos, mas permaneceu por séculos como fruto da imaginação prodigiosa dos helênicos, até ser renovada pela descoberta do Novo Mundo. Um navegador chamado Orelana afirmou ser sido atacado por mulheres guerreiras enquanto navegava um rio que, por isso, chamou-se Amazonas.
Agora, séculos depois, um homem afirma ter informações concretas sobre o paradeiro das amazonas. Seu nome é Lopez e ele garante que a tribo de mulheres guerreiras se encontra no extremo norte do país, na província do Grão Pará, mais especificamente na Serra do Tumucumaque.
Baseado nas informações que lhe foram fornecidas pelos índios, ele pretende me levar até lá. Saímos do Rio de Janeiro há alguns dias. É possível que Lopez seja apenas um trambiqueiro, mas conhecer a Amazônia vale o esforço e pode me fazer esquecer o enfadonho serviço de cônsul britânico no Brasil. Depois de ter percorrido a África em busca da nascente do Nilo, meu sangue parece ter sido infectado com a doença da aventura...

* * *
Aportamos em Belém do Grão Pará. Ficamos em um hotel próximo ao porto e conhecemos um local pitoresco que os habitantes locais chamam de Ver-o-peso. São barracas e mais barracas de comidas típicas, peixes, frutas e verduras. Experimento o suco de uma fruta chamada cupuaçu e uma comida pesada que eles chamam de maniçoba. É uma espécie de feijoada, mas tem folhagem verde-escura no lugar do feijão. A mulher da barraca diz que a folhagem é retirada da mandioca e que leva uma semana cozinhando para fazer evaporar o veneno. O composto tem aspecto desagradável de excremento, mas o gosto é bom.
Uma outra senhora me vende uma pomada feita de gordura de boto, um golfinho local e me garante que tem efeito milagroso sobre a vida sexual de quem a usa. Se soubesse que traduzi o Kama Sutra para o inglês talvez pensasse duas vezes antes de me vender esse tipo de coisa.

* * *
De Belém, pegamos um navio para Santana, no norte do Grão- Pará. É um porto pequeno, mas de boa profundidade. Apesar disso, tem pouco movimento. Aqui recrutamos três homens para nos acompanhar. A partir de agora não há mais navios e temos de seguir em barcos a remo.

* * *
Estou fora de forma. Estamos embrenhados na floresta há dois dias e já começo a sentir os sintomas de fadiga. O tempo é cruel e não respeita patentes. Avançamos lentamente pelo matagal. A floresta aqui é bem diferente daquelas da Europa ou da África. As árvores são muito altas, o que não impede a existência de vegetação rasteira. Assim, temos de abrir caminho por um emaranhado de folhagens, raízes e cipós, que muitas vezes se tornam um obstáculo instransponível, fazendo com que desviemos diversas vezes do caminho.
A noite cai repentinamente sobre a floresta, como se o céu foi fosse coberto por um véu negro.
Nossos guias não se atrevem a viajar à noite e nem eu os forçaria a isso. Sete horas da noite e a floresta já está tomada de tal escuridão que é impossível enxergar dois palmos à frente e os insetos tomam o poder, atacando de todos os locais possíveis. Pouco antes que caia a noite, nós paramos, montamos acampamento, e acendemos a fogueira, tomando o cuidado de limpar a área em volta das milhares de folhas que caem continuamente das árvores, para evitar incêndios.
Sons estranhos, como tambores, retumbam na escuridão. Os caboclos dizem que é o Curupira que testa a resistência das árvores antes das chuvas. Dizem que o Curupira é um menino de cabelos de fogo e pés para trás.
De fato, chove torrencialmente e a floresta vira um inferno. Dormimos em redes e ficamos ensopados. O barulho das gotas d’água desabando sobre as folhas dá a impressão de que estamos rodeados por um exército de pequenos homens em dança de guerra. No meio da noite a floresta alaga e somos obrigados a levantar mochilas e todos os outros pertences, pendurando-os no alto das árvores.
A chuva pára, mas, ensopado, sou dominado por um medo ancestral da rede ser invadida por uma cobra. Os homens acordam cedo e ouço-os falando baixo. Pergunto a Lopez sobre isso.
- Eles falam sobre o Mapinguari. – responde ele.
- Mapinguari?
- É um ser da floresta. Dizem que se parece com um macaco peludo, mas tem mais de dois metros e não possui pescoço, de modo que a cabeça emenda diretamente com o ombro.
- Apavorante. – comento.
- Ainda não ouviu a melhor parte. Conta-se que o Mapinguari tem a boca na barriga. Uma bocarra enorme, cheia de dentes finos como os de tubarão e de onde saiu um hálito fétido...

* * *
A comida que trouxemos acabou. Estamos nos alimentando de peixe, camarão e uma fruta escura de nome açaí, que os caboclos esquentam para que a polpa amoleça e espremem na água, formando um suco grosso e nutritivo. Felizmente, essa fonte de alimentação é abundante.

* * *
Lopez está tendo febre toda noite. Ele tem calafrios e balbucia coisas frases ininteligíveis. Os nativos dizem que ele está com malária. Eles preparam chás com plantas da floresta, mas nada parece resolver.

* * *
Lopez desapareceu durante a noite. Enquanto dormíamos, ele provavelmente caiu de sua rede e saiu em delírio pelo breu da floresta.

* * *
Estou dormindo quando sinto algo apertando minha garganta. É Lopez. Ele tem os cabelos desgrenhados e baba, como um cão raivoso. Nós lutamos e os outros acordam. Ele finalmente consegue me imobilizar e, pegando uma adaga, prepara-se para perfurar o meu crânio quando um caboclo o antige com uma pedra. Lopez cai ao chão e os outros sobre ele. Depois de uma luta feroz, o pobre homem acaba morto.

* * *
Os guias estão tensos e falam entre si. Dizem que a expedição é amaldiçoada e que os seres da floresta se voltaram contra nós. Eles tentam me convencer a voltar, mas afirmo categoricamente que irei até o fim, até o meu objetivo ou minha morte.

* * *
Estou perdido. Os nativos acordaram antes de mim e fugiram. Levaram todas as coisas, exceto minha mochila, a rede e um facão. Dentro da mochila tenho uma troca de roupa, uma bússola, um cantil e um caderno, mas não comida. Estou perdido.

* * *
Já faz dois dias que estou perdido. Tenho procurado andar na direção noroeste, onde, teoricamente, fica a cidade das Amazonas, mas não há pontos de referência e mesmo a bússola é de pouca utilidade, pois a densidade da floresta constantemente me desvia do caminho. A fome corrói meu estômago, mas felizmente foi possível achar água limpa em uma fonte e pude encher o cantil.

* * *

Três dias perdido. Achava que morreria de fome quando encontrei uma árvore frondosa, em formato de pinheiro, repleta de frutos vermelhos que aqui chamam de jambo. Embora a casca seja vermelha, o fruto é branco por dentro e muito agradável ao paladar.

* * *

Quatro dias perdido. Comi o quanto pude da fruta vermelha, enchi minha mochila com elas e me pus a caminho. Depois de vários dias sozinho, os barulhos da floresta me assustam. De tempos em tempos, ouço galhos quebrando e folhas secas sendo pisadas. É como se estivesse sendo seguido. A floresta parece ter vida e espiona cada passo meu. Em meu estado paranóico, sinto como se os pássaros que cantam e trinam formassem uma rede secreta e mágica de informações sobre o forasteiro que ousa desafiar a mata.
O pior é quando chove.
As gotas fortes da chuva batendo contra as folhas secas formam uma orquestra de sons abafados e assustadores... e me pergunto se seres estranhos não se aproveitam disso para se aproximar e me vigiar.

* * *

Quinto dia. Estou completamente perdido, andando em círculos e voltando sempre para o mesmo lugar. As frutas acabaram e a fome me consome. Também tenho sede e sobrevivo lambendo as folhas molhadas pelo orvalho da madrugada.

* * *

Sexto dia. Sinto febre e calafrios. Embora esteja em pleno Equador, sinto frio como se estivesse no inverno londrino. Vago pela floresta a esmo. Não sei para onde estou indo.

* * *

Sétimo dia. Vaguei o dia e a noite inteira, queimando em febre, assustado com cada som da floresta, tropeçando nos galhos, importunado por moscas que me parecem gigantescas.

Então, quando acreditava que ia morrer, quando caía ao chão, desfalecido, disposto a aguardar pelo fim, vi vultos brancos se aproximando. No começo eram como névoa, mas logo distingui formas e percebi que eram mulheres. Elas deviam estar em carregando em uma espécie de maca. Entramos em uma clareira e visualizei um enorme portão que me pareceu feito de ouro. O portão se abriu para nós e entramos na cidadela por uma praça enorme e suntuosa. A febre me consumia, mas eu só conseguia pensar em uma coisa: finalmente havia chegado à cidade das Amazonas!
Depois disso o véu da inconsciência cobriu meus olhos e adormeci em meio a sonhos dourados.

* * *

Não sei quantas horas dormi. Talvez tenha dormido dias seguidos. Acordo com uma mulher ao meu lado, me oferecendo uma espécie de sopa. Ao contrário do que eu imaginava, ela não se veste como uma deusa grega. Na verdade, ela usa um vestido curto de tecido leve, adornado com penas. Nos pés, usa uma sandália de couro e uma tiara de couro na cabeça.
O quarto em que estou tem teto alto e parece ser feito todo de pedra. Estou deitado em uma cama de madeira nobre enfeitada em alto-relevo com imagens de mulheres guerreiras, preparando-se para a guerra. As figuras parecem saídas de um templo inca ou maia.
Quando me sinto melhor o bastante para poder caminhar, minha enfermeira me leva para fora. O palácio tem corredores largos e compridos e sua arquitetura lembra os palácios incas sobre os quais li diversos relatos.
Mais uma vez me deparo com a praça que vira ao chegar, mas agora, vista sem o véu da febre e da inconsciência, ela me parece incrivelmente bela. Nem mesmos os jardins do sultão de Bagdá rivalizariam com ela. Há belos e poderosos arcos de pedra com imagens em alto-relevo que parecem cantar, na linguagem muda das rochas, os feitos das amazonas. Flores as mais variadas se espalham pelo espaço vazio em tal quantidade que a praça toda parece exalar um perfume inebriante.
Aqui e ali, sentadas em bancos, belas mulheres conversam ou lêem enquanto ando entre elas. Uma delas me inpressiona ao ler um livro aparada apenas na ponta de um pé, tendo a outra perna sobrada, como um iogue.
Atravessamos a praça e entramos naquela que parece ser a construção principal do conjunto. Atravessamos imensos portais de madeira e depois um salão. Finalmente paramos na frente de um trono.
Eu, acostumado a lidar com pessoas poderosas, prosto-me ao chão, mas uma voz suave como a brisa da primavera ordena que eu me levante. Então olho para cima e vejo uma mulher de cabelos longos e pretos. Seus olhos, negros como a noite, são repletos de curiosidade e gosto de aventura. É a rainha, e chama-se Maíra.
Passo vários dias na cidadela das Amazonas. A rainha faz perguntas e mais perguntas sobre o mundo lá fora e desconfio que seu grande interesse no mundo exterior não é bem visto pelas outras. Conto-lhe sobre minhas andanças pelo mundo árabe e pela África. Quando digo que a Inglaterra é o maior império do Mundo, ela ri.
Estou recuperado, e Maíra diz que devo voltar para onde vim. Vão me conseguir um guia indígena, que me levará até um local povoado.

* * *

Maíra levantou os olhos do caderno, entre intrigada e extasiada.
- A única exigência que fizemos foi que ele deixasse conosco seu diário. – explicou Najara. Um grupo de índios o levou em segurança até a cidade mais próxima.
- Há algo que não entendo...- disse Maíra.
- O que é?
- A rainha, chamava-se Maíra...
- Há muitas coisas que você não sabe, querida. Mas não se preocupe: tudo tem seu tempo... tudo tem seu tempo...

4/14/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 6 – O HOMEM QUE CONTROLAVA O TEMPO



Marcos e Antônio acordaram lado a lado e olharam-se, atônitos.
Estavam no meio de escombros de uma velha construção em ruínas. O cheiro forte de urina misturava-se ao aroma acre da madeira em decomposição. Nos canto mais escuros, ratos enormes conversavam entre si com guinchos que pareciam choro de bebês.
- O que... o que estamos fazendo aqui? – perguntou Antônio.
Marcos passou a mão na nunca, tentando afastar uma leve dor de cabeça.
- Não sei. Aliás, que lugar é esse? Não me lembro de nada...
- Vamos, vamos sair daqui...
Quando atravessaram a porta, Antônio reconheceu o local.
- Ei, parece o Palacete Paris. Cara, como está, pode não parecer, mas essa é uma das construções mais lindas da cidade... se eu tivesse bastante dinheiro, usava para restaurar este local...
- Tá, só se você ganhasse na loteria...
- Bem, não custa nada sonhar, não é mesmo?
E se afastaram pela rua, de volta para suas casas e para suas vidas. Na praça, o relógio marcava sete horas da noite. Os relógios de Marcos e Antônio também marcavam sete horas...

* * *
Marcos viu-se de repente no meio da rua. Ele imaginava onde Antônio teria comprado o relógio. Havia um sebo duas ou três quadra abaixo do banco. Depois de alguma procura, encontrou-o. Era uma casa simples, com portas de correr. O espaço era comprido, mas estreito, organizado com uma divisória. Na parte externa ficavam os livros, no fundos, objetos antigos.
Marcos foi direto para os fundos. Alegrou-se ao ver que o relógio ainda estava lá, na parte mais baixa da prateleira, escondido atrás de uma mesa de madeira.
O velho, comodamente sentado no balcão, na entrada da loja, pediu 100 reais, mas Marcos pechinchou até chegarem a 50 reais.
Saiu da loja com o objeto nos braços e procurou uma rua deserta. Assim que se viu longe dos olhos de qualquer pessoa, levantou vôo. Atravessou a cidade até a lixeira e soltou o relógio. A queda de dezenas de metros destroçou o objeto, fazendo com que suas partes, mecanismos e engrenagens se espalhassem em meio ao lixo. Então tudo virou inconsciência.

* * *

Antônio pegou na caixa de madeira do relógio com uma certa reverência, como se manipulasse um objeto sagrado. Então abriu uma portinhola lateral e dela sacou uma manivela, que girou sob sua mão, num rangido de protesto.
Fez isso e afastou-se dois passos, ficando ao lado de Marcos.
O relógio tiquetaqueava e seus ponteiros giravam sem lógica ou ordem, como se houvessem enloquecido. O ponteiro de horas ia para a direita, o de minutos para a esquerda e o de segundos, ora para a esquerda, ora para a direita.
Marcos olhou o objeto atentamente, concentrado. Uma imagem começou a se formar. O local era conhecido: uma rua de Santa Helena. A pergunta era quando.
Sem esperar uma resposta, Marcos pulou sobre a imagem e desapareceu, para espanto do amigo.

* * *
Antônio olhou, divertido, para o amigo. Seu rosto normalmente sério parecia ter passado por uma espantosa mutação que revelava um menino feliz e empolgado.
- Você sabe de minha paixão por sebos.- começou ele. Adoro livros usados. Um dia eu estava em um sebo quando vi o relógio. Por alguma razão, fiquei fascinado por ele e decidi comprá-lo. O homem da loja queria cem mangos, mas consegui convencê-lo a aceitar cinqüenta. Quando caminhava com ele de volta para casa, eu me perguntei porque estava tão nervoso. Por que minhas mãos estavam tremendo? Por que meu coração pulsava como se eu fosse ter um ataque cardíaco? Assim que cheguei, coloquei o relógio sobre a mesa e comecei a mexer nele. Descobri uma manivela. Talvez se eu a girasse, poderia fazê-lo voltar a funcionar. Então algo estranho aconteceu. Uma espécie de halo de luz se abriu em leque, acima do relógio. Por alguma razão, eu me lembrei de um fato específico. Eu era jovem e tinha ido ao médico do INSS. Cheguei lá umas cinco e meia da manhã, mas já não havia mais senhas, então eu fiquei caminhando pelas ruas desertas. Quando amanheceu, eu me sentei em um banco de praça e comecei a ler o livro que tinha levado, sentido a neblina me envolver, o orvalho das plantas se evaporando e se elevando até as minhas narinas. O livro era A máquina do tempo, de H.G. Wells. Para meu espanto, a cena se projetou na luz à minha frente. Não era como uma projeção de cinema, era como olhar por uma janela. Percebi o que era o relógio e como controlá-lo. O resto é óbvio. Eu fui ao futuro e descobri quais seriam os números sorteados na Loto. Agora estou milionário.
- Pode me mostrar como funciona? – perguntou Marcos.

* * *
Marcos olhou-o intrigado, tentando entender a situação.
- E o tempo não é absoluto?
- Não. Nem de longe. Einstein demonstrou que o tempo é relativo. O mesmo fenômeno, visto por duas pessoas diferentes, pode estar acontecendo em momentos diferentes. O tempo também é influenciado por forças como a gravidade e a velocidade. Se você estiver viajando à velocidade da luz, o tempo passará mais lentamente para você. Da mesma forma, o tempo passa mais lentamente em locais com alta gravidade. Imagine como deve ser o tempo em um buraco negro!
- E o que isso tem a ver com o relógio e a mega-sena?
- Esse relógio é uma espécie de observatório privilegiado para o qual se volta a relatividade do tempo,uma espécie de vórtice no tempo-espaço....
- Você usou-o para descobrir qual seria o resultado da loteria?
- Imagine as possibilidades fantásticas que esse aparelho representa!
- E o perigo também...
- Perigo?
- Todos os relógios parecem ter enlouquecido... talvez você tenha mexido com algo que... eu não sei... uma espécie de equilíbrio muito delicado...
- Bobagem. Qualquer que seja o equilíbrio que o universo precisa, duvido que o que fiz vá mudar alguma coisa... além disso, há uma tendência universal para a homeostase, para o equilíbrio. - argumentou Antonio.
- Nem todos os sistemas tendem para o equilíbrio. Talvez o tempo tenha uma tendência mais entrópica, caótica... – rebateu Marcos.
Calaram-se, como se tivessem chegado a um impasse.
- É apenas um observatório, ou é possível participar do que está sendo mostrado?
- É possível também participar, o que é muito perigoso, especialmente no passado. Conhece o paradoxo do pai e do filho?
- Sim, um homem volta ao passado e mata seu pai antes que ele se case com a sua mãe. Assim, ele nunca teria nascido e, portanto, jamais poderia voltar ao passado para matar seu pai... onde arranjou o relógio?

* * *
Dois meses depois, Gabriel resolveu visitar Antônio. Este recebeu-o com a alegria de uma criança que ganha um brinquedo novo e tem finalmente alguém para mostrá-lo.
Antes de entrarem, Antônio mostrou-lhe a fachada da casa, as grades, o pequeno parapeito no segundo andar, sob o qual havia insuspeitos relevos.
- A ma ioria das pessoas jamais teria a idéia de olhar para cima, mas os construtores prepararam esse pequeno presente para o sortudo que tivesse essa visão privilegiada. – explicava Antônio, com indisfarçável entusiasmo. É tudo uma obra-prima, das linhas arquitetônicas aos pequenos detalhes.
Então entraram e percorreram a sala, a copa, os quartos... Antonio mostrava tudo e gabava-se da rapidez com que havia terminado a reforma.
Ele deixou por último um quarto no segundo andar. Era fechado à chave e Antonio trazia a chave na cintura.
- O que vou mostrar a você, poucas pessoas já viram. Nem sei porque vou mostrar-lhe. Talvez porque eu saiba que você é uma das poucas pessoas capazes de compreender.
Era um quarto vazio, exceto por uma mesa e, sobre ela, um relógio antigo, de madeira.
- E então? – perguntou Marcos.
- E então? – espantou-se Antônio, como se o outro não conseguisse ver o óbvio. O relógio!
- Parece ser uma raridade, mas não compreendo porque todo esse mistério... você o comprou há pouco tempo?
- Não, há mais de dois meses...
Marcos franziu o cenho.
- Então não é uma relíquia. Há dois meses você era tão pobre quanto eu.
- Na verdade, esse relógio é a razão pela qual hoje eu tenho tanto dinheiro...
- Como assim?
Marcos aproximou-se e tocou o objeto.
- Como assim?
- O tempo é a chave. Ou pelo menos a noção que temos de tempo. Newton achava que o tempo era um valor absoluto. Ou seja, ele permaneceria o mesmo em todos os locais e situações. Ele caminharia da mesma maneira, estivesse você em Marte ou no quintal de sua casa....
* * *
Antonio não foi mais ao banco. Estava muito ocupado com a realização de seus sonhos. Fazia questão de inspecionar pessoalmente as obras de restauração do Palacete Paris. A imprensa noticiava isso como uma espécie de excentricidade, que logo deixou de provocar interesse no público. O assunto principal passou a ser outro: a desregulagem do tempo. Relógios atrasando ou adiantando-se tornaram-se cada vez mais freqüentes. Até a programação da TV e do rádio ficou prejudicada. Programas começavam sem que seus locutores tivessem chegado, anúncios locais entravam em cima da programação nacional... todos os relógios pareciam estar loucos.

* * *
No final da tarde, Marcos levou o relógio ao relojoeiro. Era um velhinho simpático e falador. Marcos espantava-se com sua coordenação motora, o modo com, apesar da idade, manipulava peças minúsculas.
- Hoje foi o dia. – disse o velhinho. Nunca trabalhei tanto na minha vida. Parece que todos os relógios da cidade resolveram adiantar, ou atrasar... até o ponto que já não sei mais qual relógio está marcando a hora certa.... bem, não parece haver nada de errado. Vou fazer apenas uma limpeza. Se ele continuar com problemas, traga que só vou cobrar se for necessário trocar uma peça...
Marcos agradeceu, pegou o relógio e foi para casa.

* * *
Marcos chegou apressado ao banco, temendo estar atrasado, mas mesmo que estivesse mesmo atrasado, pouco notariam isso. O local estava um alvoroço de balões (restos do aniversário de um funcionário), sorrisos e saudações. No centro das atenções, Antônio Simões, um funcionário tímido, de óculos de aro preto, uma calvície avançando perigosamente pela já rala cabeleira. Era estudante de artes em uma faculdade particular à noite. Uma das poucas pessoas com as quais Gabriel gostava de conversar.
- O que está acontecendo?
- O que está acontecendo? – espantou-se alguém. Onde você estava? Na Lua? Você está diante do mais novo ganhador da mega-sena...
- Acumulada! Mega-sena acumulada! – ajuntou alguém.
- E quem é o felizardo? - indagou Marcos, sorrindo.
Todos apontaram para Antônio.
Gabriel deu-lhe um abraço.
- Cara, você?!
- É, eu sabia que ia ganhar...
Pipocaram os gritos de “Modesto”, “Sortudo”.
- E agora, o que você vai fazer com o dinheiro?
- Bem, antes de mais nada, quero realizar um velho sonho. Já ouviu falar do Palacete Paris?
- Sim, claro, está abandonado...
- Mas é a construção arquitetônica mais bela de Santa Helena. Vou compra-lo e restaura-lo!

* * *
A primeira coisa que Marcos percebeu quando desceu do ônibus é que seu relógio estava atrasado. O relógio da praça marcava 8:50, e em seu relógio eram apenas 8:30. Ele parou ao lado de uma banca de jornais para acertar o relógio e aproveitou para olhar as manchetes. A Folha de Santa Helena e a Gazeta de Santa Helena traziam informações sobre política, especialmente sobre as próximas eleições, mas a Gazeta Popular trazia um fato curioso: um ganhador da mega-sena acumulada era de Santa Helena. Os outros dois jornais também traziam a informação na capa, mas com menor destaque.
“Milhões de reais”, pensou Marcos. “Viria bem a calhar, ainda mais agora, com Cristina grávida”.
Então olhou o relógio da praça e espantou-se: eram 9:10 e ele estava atrasado, mas não parecia terem se passado vinte minutos. Olhou para o seu próprio relógio e ele marcava 8:35.
“Os relógios estão doidos”, pensou, correndo para o banco.

4/02/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 5 – DESAPEGO

No dia seguinte, Marcos e Cristina não foram trabalhar. Dormiram até tarde e conversaram pouco. Era ainda difícil lidar com o que tinha acontecido: o seqüestro de Cristina, o homem de preto. Marcos quase o matara. Pela primeira vez em sua vida, ele quase tirara a vida de uma pessoa e esperava jamais precisar voltar a fazer isso.
Ele foi o primeiro a acordar e se sentiu feliz por ter Cristina ao seu lado. Só damos valor ao que perdemos e ele quase perdera a esposa. Como forma de demonstrar o seu carinho, ele a beijou na testa. Cristina acordou desesperada e afastou-o com um empurrão. Então percebeu que era ele e o abraçou, chorando. Seus olhos ainda estavam vermelhos quando tomaram café e ela não disse uma única palavra. Na verdade, evitava o olhar do marido.
Na hora do almoço, Marcos quebrou o silêncio.
- Sabe, ontem, enquanto procurava você, eu pensava o tempo todo em minha mãe.
- Você me falou muito pouco de sua mãe. – disse Cristina, aliviada por ele ter , finalmente, tomado a iniciativa da conversa.
- É verdade. Falo muito pouco de minha mãe. Ela morreu muito cedo... quando era pequeno, eu podia ouvir, sentir, cheirar, perceber o gosto das coisas de forma extremamente minunciosa. E eu podia voar. Levei algum tempo até descobrir que as outras pessoas não tinham as mesmas habilidades que eu tinha. Lembro das crianças caçoando de mim quando eu perguntava se elas podiam voar...
- É sério? Você achava que todo mundo podia voar?
- Achava. Eu não me sentia especial. Para mim, eu era como qualquer outro...
Cristina segurou sua mão e apertou-a, como se lhe dissesse, através de gestos, que sim, ele era especial para ela.
- Poucos meses depois que descobri esses talentos, comecei a ouvir vozes. Há algum tempo li um livro que dizia que crianças costumam conversar com pessoas desencarnadas e pensei: Era isso! Era isso que acontecia comigo. Eu falava com espíritos e eles me davam conselhos, me antecipavam o futuro... uma vez eles me disseram para não pegar um ônibus e depois descobri que esse ônibus havia sofrido um acidente...
- E a sua mãe?
Marcos abaixou os olhos.
- Um dia ela acordou, disse que o café estava pronto e saiu para trabalhar. Eu estava lavando o rosto quando ouvi o seu grito. Saí correndo. Havia várias pessoas olhando assustadas para um corpo estendido no chão. Eu abri caminho entre elas e encontrei minha mãe caída no chão, o sangue escorrendo de sua boca. Ela morreu em meus braços. Nem deu tempo de chegar ao hospital... Naquele momento, eu tive ódio das vozes que falavam comigo. Por que elas não haviam me avisado? Eu teria voado e tirado minha mãe do caminho do carro... Por que me avisaram quando eu ia pegar o ônibus que sofreria o acidente, mas não me avisaram quando minha mãe ia morrer? Por quê?
Marcos ficou em silencio, como se remoesse essa pergunta dentro de si.
- Talvez ela devesse morrer. – foi a reposta de Cristina. Talvez fosse algo que eles não pudessem lhe contar...
- Sim, talvez. – concordou Marcos, fungando. Mas na época eu só podia pensar que minha mãe estava morta e eles não haviam me avisado. Eu era um menino de 10 anos, sozinho no mundo. De certa forma, amaldiçoei meus talentos, assim como amaldiçoei as vozes. De que me adiantava poder voar, se isso não servira para que eu salvasse minha mãe? De que adiantara minha superaudição se eu não escutara o carro se aproximando dela?
Novo silêncio. Marcos tampou os olhos, tentando esconder as lágrimas.
- Depois disso, nunca mais ouvi as vozes. Também nunca mais usei meus poderes. Até um ponto em que eu me esqueci completamente deles. Isso até alguns dias atrás, quando eu acordei com uma dor de cabeça terrível...
- Você tinha me falado do orfanato, mas nunca tinha me contado sobre sua mãe.
Cristina pegou as mãos de Marcos e olhou com ternura.
- Estou muito feliz ao seu lado. Para mim, você é especial. E estou mais feliz ainda por você estar,finalmente, se abrindo comigo...
Os dois se beijaram e ele a levou para o quarto. Fizeram amor durante muito tempo,
como se não existisse o tempo e quisessem aproveitar cada segundo.

* * *
À tarde, Marcos foi à banca de revistas ver se algum jornal havia noticiado os acontecimentos do dia anterior. Descobriu que a Gazeta Popular publicara uma edição extra, vespertina, para contar os fatos da prisão do chamado “maníaco do porão”. Era uma edição magra, com apenas 12 páginas, letras garrafais e muita propaganda. Mas ainda assim estava “vendendo como banana”, como disse o jornaleiro.
O jornal informava que fora encontrado, inconsciente, na noite anterior, o homem que provavelmente era o responsável pelo desaparecimento de várias mulheres em Santa Helena nos últimos anos. Estavam em um porão. O delegado responsável pelo caso dizia que a prisão só fora possível graças a uma denúncia anônima.
“Junto com ele”, dizia a reportagem, “foram encontradas duas mulheres. Uma delas, identificadas como Wilma Aparecida dos Santos, 31 anos, havia desaparecido há um ano no estacionamento da empresa em que trabalhava. Ela estava desnutrida e com ferimentos nos pulsos e nas pernas. A outra mulher não foi identificada e, segundo os policiais, parece ter desaprendido a andar e a falar”.
A matéria continuava falando sobre as condições em que as mulheres foram encontradas e tinha declaração de um perito da polícia, segundo o qual a mulher não identificada havia sofrido sérios problemas de personalidade: “Esse psicopata conhecia fundamentos de psicologia comportamental e usou isso para condicionar essas mulheres e fazer delas o que bem entendesse”.
Sob o porão os policiais haviam encontrado vários corpos em decomposição e até esqueletos. Aparentemente, o cheiro do cortiço abafava o fedor dos corpos em decomposição, razão pela qual os vizinhos nunca desconfiaram de nada.

A matéria trazia declarações de vários vizinhos dizendo que o maníaco parece absolutamente normal. Uma vizinha lembrou que ele a ajudava a cuidar do jardim e sempre oferecia sucos e biscoitos para as crianças da rua.
Segundo o jornal, o psicopata havia sido derrotado pelo marido da vítima mais recente, mas não sabia dar informações sobre quem era esse misterioso salvador.
Por alguma razão, outra notícia chamou a atenção de Marcos:

FANTASMA ASSOMBRA LOJA DE DEPARTAMENTOS

Um boato está colocando em polvorosa os funcionários de uma loja de departamentos muito conhecida na cidade: o local estaria sendo freqüentado por um fantasma. Uma funcionária afirmou ao nosso jornal que um homem entrou no vestiário e não saiu. Quando foi procurar por ele, encontrou apenas algumas roupas velhas.
Marcos não leu o resto. Dobrou o jornal, colocou debaixo do braço e rumou para casa.
Estava decidido a abandonar a sua vida de vigilante. O que acontecera na noite anterior o deixara preocupado. Ao utilizar suas habilidades, ele teria contato com assassinos, ladrões, traficantes, corruptos... pessoas que poderiam ter o impulso de se vingar. Ele não temia por si, mas por sua esposa grávida.
Marcos havia discutido isso com Cristina e ela concordou. Temia pelo futuro e queria ter o marido ao seu lado, e não voando pela cidade à noite, quando ela ficaria sozinha.
Ele protegeria a cidade, mas quem protegeria sua esposa? As imagens de sua mãe morta, estendida no chão, ensangüentada... Marcos jamais se perdoaria se algo assim acontecesse à sua esposa.
Um Hare Krishna o parou, interrompendo seus pensamentos. Falava rápido e sua voz parecia vazia de significado. Em certo momento ele estendeu a Marcos um livro grosso. Meio a contra-gosto e mais para se livrar do assédio, ele pegou o livro. Chamava-se Bagavad-Gita. Marcos abriu uma página ao acaso e leu:
“Dedica-te à obra exclusivamente, jamais aos seus frutos. Tuas ações não devem ser motivadas pelo proveito que possam trazer; não deve tampouco te abandonares à inação. Firme na yoga, executa tuas obras sem apego nem interesse, permanecendo o mesmo qualquer que seja o resultado, feliz ou adverso”.
Marcos devolveu o livro e voltou a andar, como que hipnotizado. As palavras que lera haviam causado uma impressão profunda em sua alma. Da mesma forma que antes estava decidido a abandonar sua atividade como vigilante, agora estava decidido a continuá-la.
Mas para isso precisava de algo que encobrisse sua identidade. Chegando em casa, conversou sobre isso com Cristina e decidiram-se por um capote e um capuz levantado.
À noite, quando assistia ao telejornal, viu uma matéria especial sobre um homem que estava salvando pessoas na cidade.
A reportagem dizia inclusive, que o estouro do cativeiro do maníaco do porão se devesse a esse misterioso herói.
Nas ruas, algumas pessoas já começavam a lhe dar um nome: anjo.
O anjo. Era assim que o chamavam. Precisava estar à altura do nome.

3/26/2006



MAÍRA – A GUERREIRA AMAZONA
Episódio 2 – A primeira missão


Maíra se esquivou para trás de um arquivo de ferro e ficou lá, suportando a chuva de balas que caia sobre ela.
Em meio ao tiroteio, ela sentiu uma suave brisa e a gozou plenamente, em todo o seu frescor. O vento balançava seus cabelos, acariciava seus seios e lambia a pele de seu rosto.
Ela se lembrou dos ensinamentos de Rani, segundo a qual um velho sábio dissera ser tolo aquele que, por medo da morte, não gozava os prazeres da vida.
Seria bom que Maíra fruísse todos os prazeres que a vida pudesse lhe oferecer naquele momento... pois a morte estava próxima.

* * * *

Graças às muitas colaboradoras, prontas a ajudar a causa a qualquer custo, Maíra conseguira um emprego de secretária na GWB Empreedimentos SA. Ninguém sabia exatamente o que fazia essa empresa, mas era certo que seus negócios tinham ênfase no mercado de ações. Havia um misterioso e desconhecido sócio majoritário, que orientava pessoalmente, sempre através de e-mails, cada passo das operações, fosse o dinheiro dele ou dos clientes.
A perspicácia e o senso econômico pouco ortodoxo haviam levado a empresa a faturar bilhões no mercado mundial. No Brasil as cifras movimentadas eram sempre na casa dos sete dígitos. A GWB parecia estar séculos à frente de seus concorrentes.
Maíra evidentemente não foi admitida com seu nome de amazona. Para a empresa, ela era a senhorita Sandra Garcia. Era tratada como Miss Garcia, provavelmente em consonância com a origem geográfica do sócio majoritário, origem essa que se refletia em todos os pequenos aspectos da rotina trabalhista. O almoço, por exemplo, era composto sempre de hambúrguer saboroso como isopor, e coca-cola. Os lanches eram regados a grandes porções de café fraco e rosquinhas.
Maíra também precisou mudar o visual. Ela cortou o cabelo, deixando-o bem curto e passou a usar saia e sapato alto.
A rotina de Miss Garcia na GWB iniciava britanicamente às 8 horas. Ela ligava o computador e verificava os e-mails, a maior parte deles em linguagem codificada. Imprimia os que pareciam mais importantes e enviava, junto com a versão digital, para o presidente. Claro, o presidente não era o sócio majoritário. A maior parte dos funcionários acreditava que nem mesmo o presidente nunca o vira. O presidente era só um testa-de-ferro, que se mantinha no cargo por seguir estritamente as ordens que recebia por e-mail e assim mantinha o gordo salário mensal, o colégio das crianças e a casa na praia.
Muito mais poderosa do que ele parecia ser a chefe de gabinete.
Miss Ross era um típica caucasiana, alta, loira, de olhar frio. Maíra sabia que era ela que decodificava os e-mails e provavelmente era a única pessoa a ter encontros pessoais como sócio-proprietário, se é que alguém os tinha.
Depois de verificar os e-mails e a agenda, Miss Garcia digitava documentos e filtrava as visitas ao presidente.
Às dozes horas paravam para o almoço, ou melhor, lunch, que era composto, geralmente de hambúrguer e refrigerante.
Às duas retornava ao trabalho e era a mesma rotina até o final da tarde, quando Miss Garcia voltava para casa.
Essa rotina se repetiu durante três semanas consecutivas, sem alterações, até certo dia em que Miss Ross a chamou.
- Miss Garcia, encontramos um pequeno problema em seu currículo. Aqui diz que a senhorita trabalhou em uma sapataria de nome Real, mas mandamos um e-mail para lá e eles afirmam que nunca tiveram o prazer de te-la como sua funcionária.
Maíra ficou branca. O currículo, evidentemente, era inventado, mas havia sido checado em cada detalhe para parecer autêntico. Mas, pelo jeito, algo passara pela revisão.
- Miss Garcia, não gostamos de mentiras aqui. – rosnou Miss Ross. Sabe o que fazemos com mentirosos?
Maíra sabia, ou desconfiava. Tinha ouvido histórias sobre funcionários que eram demitidos e desapareciam...
Eles provavelmente matavam quem não era de confiança.

* * *

Maíra avançava pelos corredores do palácio quando ouviu uma voz desconhecida. Era como murmúrios, como se alguém cochichasse.
Seguindo o murmúrio, ela penetrou em uma sala que não conhecia. Lá ela encontrou sua mãe falando alguém que não aparecia. À frente dela, uma imagem diáfana, como fumaça ou névoa.
Janaina silenciou e olhou por cima do ombro. Percebendo a presença da filha, ela deu um passo para o lado, como se apresentasse alguém. Atrás dela havia uma névoa branca no formato de mulher. Era uma velha de cabelos compridos e olhos misteriosos. Com um vestido branco de nuvens, ela flutuava em um tubo transparente.
- Aproxime-me, menina. – disse o espectro, sua voz soando como se saísse do fundo de um poço.
Maíra andou até ficar frente a frente com a imagem diáfana.
- Você estava perdida e foi resgatada. É bom te-la de volta conosco.
Maíra lançou uma olhar indagador para a mãe, mas não houve nenhuma resposta. A moça nunca vira antes o espectro e não sabia o que queria dizer com ter sido resgatada.
A mulher fantasma flutuava encarando Maíra com ternura e mistério.
- Mãe, quem é... ? – gaguejou.
- É sua avó. Ela morreu muito antes de você nascer. Chama-se Selena.
Maíra olhou para o espectro, tentando se acostumar com a idéia de que estava conversando com uma morta. Depois virou-se para a mãe, mas antes que pudesse falar, esta a silenciou colocando um dedo sobre seus lábios.
- Sei que tem muitas perguntas, minha filha, e elas serão respondidas, a seu tempo. Mas agora preciso lhe falar sobre uma missão.
Uma missão! Por alguns instantes Maíra se esqueceu até da presença espectral que flutuava atrás dela, tal era o impacto que a palavra lhe causava. Fazia mais de quatro anos que Maíra pedira por uma missão individual. Naquela época ela era apenas uma menina tentando ajudar as Amazonas a libertarem algumas escravas brancas.
Depois de tanto tempo, achava que a missão não viria, pois não participara nem mesmo de missões em grupo. Passava o tempo todo estudando e treinando. Sua educação incluía línguas , geografia, história, redação e geometria fractal. Além disso, ela estudava tanto a informática rudimentar e grosseira de um Windows quanto a computação mágica das Amazonas, que como tudo ali, era impossível distinguir o que era técnica e o que era magia.
Maíra estudava também filosofia, tendo como mestra a pequena e venerável Rani. Mas as aulas de filosofia não tinham horário ou locais definidos. Aconteciam em qualquer momento, em qualquer lugar, ao sabor da curiosidade da moça. “Aprender filosofia é aprender a pensar”, ensinava Rani. “E pensar significa, na maioria das vezes, romper modelos pré-estabelecidos”. Uma aula com horário e local marcados jamais daria conta da complexidade do pensar filosófico.
- Nós temos um grande inimigo. – disse a Rainha, interrompendo o fluxo de pensamento da filha. Você não sabe muito sobre ele, e na verdade nem nós o conhecemos direito. Sabemos apenas que é guiado por uma ânsia descomunal pelo poder. O poder, minha querida, é uma droga que embriaga e vicia. Nosso inimigo age de forma sorrateira e misteriosa. No entanto, descobrimos que ele está atuando no Brasil através de uma empresa, a GWB Empreendimentos. Aparentemente ele está controlando o fluxo do mercado de ações utilizando o padrão fractal das redes de boatos. Precisamos de alguém que entre lá e descubra informações para nós sobre como estão fazendo isso. Você será esse alguém. Vamos criar um currículo falso para você arranjar-lhe um emprego de secretária...

* * *

- Miss Garcia, sabe o que fazemos com mentirosos? – rugiu Miss Ross, fazendo com que a secretária desse um pulo de espanto.
Ross falava como uma caçadora que acua a presa.
De repente, em meio ao desespero, Maíra percebeu um piscar na tela do computador.
- Miss Ross, parece que chegou e-mail. – disse ela, torcendo para que o truque funcionasse.
A mulher caucasiana, visivelmente contrariada, olhou para a tela.
- Sim, parece que chegou e-mail.
Nada, além do condicionamento de responder e-mails no exato momento em que chegam explica o fato dela deixar o que seria um longo interrogatório para se ocupar do computador.
Enquanto lia a mensagem, mudava sua expressão, de contrariada para intrigada e finalmente para calma.
- Senhorita Garcia, parece que houve um lamentável equívoco. A sapataria Real recentemente mudou de proprietário e sua ficha aparentemente se perdeu no processo, mas estão nos mandando um e-mail confirmando sua passagem por lá. Peço desculpas.
Se a mulher caucasiana tivesse advinhado quem era Miss Ross, teria levando em frente sua investigação, mas ficou nisso.
Maíra gravava em disquetes, ou, quando sentia que isso era perigoso, imprimia uma cópia para si dos e-mails codificados.
À noite, em seu apartamento, ela tentava decodificar as mensagens. O método para isso é antigo e remonta à Idade Média. Enquanto os europeus ainda achavam seguro o processo simples de trocar uma letra por sinal qualquer, os árabes já sabiam como decodificar códigos muitos mais complexos, baseando na probabilidade de ocorrência das letras. Esse método foi brilhantemente ilustrado por Edgar Alan Poe no conto O Escaravelho de Ouro e consiste em fazer uma tabela das letras mais raras, e portanto mais informativas, e as menos raras, e portanto mais redundantes, em uma língua. A seguir o padrão da língua é comparado com os padrões de repetições de sinais nos textos codificados.
Na língua portuguesa, por exemplo, as letras mais comuns são o A e o E. as mais raras são o X, o Y e o Z. Em um texto com grande quantidade de palavras, o sinal que for mais redundante, será, provavelmente, um A ou E.
Os e-mails usava como sinais as próprias letras do alfabeto. Maíra tentou simplesmente dobrar o alfabeto sobre si mesmo, de modo que o Z representasse o A, o X o B e assim por diante. Evidentemente isso não deu resultado. Não era provável que o sócio-majoritário da GWB usasse um código tão simples.
Uma outra tática interessante de decodificação, usada pelos ingleses para descobrir a chave da terrível máquina nazista Enigma, consistia em tentar colas, palavras que provavelmente constavam no texto. Descoberta uma palavra, o resto ficava fácil.
Sendo instruções para o mercado de ações, as mensagens provavelmente deveriam ter palavras como COMPRE, VENDA, AÇÕES. Maíra passou três dias tentando colas e quando conseguiu descobrir uma palavra, deu pulos de alegria. As palavras lhe revelaram nada menos que 11 signos. Daí em diante foi fácil.
Maíra descobriu que cada letras podia ser substituída aleatoriamente por três outras letras. Para tornar mais difícil a decodificação, havia signos que não representavam nada.
Ela escreveu a chave e gravou em um disquete junto com os e-mails de todos os concorrentes da GWB.
No dia seguinte, esperou todos os funcionários saírem e começou a redirecionar os e-mails, daquele dia, junto com as chaves, para as empresas concorrentes.
Ela sabia que o império do inimigo misterioso desmoronaria rapidamente com as informações que estava repassando.
Foi quando começou a ouvir tiros.

* * *

Maíra respirou fundo, tentando identificar, em meio à fumaceira de pólvora, seu próprio perfume adocicado.
De tempos em tempos, levantava e disparava uma rajada com um dos aparelhos que recebera das amazonas, uma pistola disfarçada em estojo de pó compato. Mas sabia que isso apenas atrasaria seus inimigos. Em pouco tempo eles cairiam sobre ela e uma bala acertaria seu crânio.
Então algo aconteceu. Por um momento a chuva de balas cessou, para continuar novamente em outra direção. Maíra esticou a cabeça por cima do arquivo e teve uma surpresa. A cavalaria tinha chegado! Najara avançava com a clava na mão, distribuindo bordoadas como um furacão.
Atrás dela, Rani, em um módulo anti-gravitacional, armava e desarmava seu arco tão rápido que era impossível acompanhar com os olhos.
Mais atrás, também em um módulo anti-gravitacional, Janaina emitia rajadas com seu cetro de rainha.
Os inimigos caiam como plantas no dia da colheita.
Em pouco tempo, Janaina pegava Maíra em seus braços, e desaparecia com ela no módulo anti-gravitacional.
Antes de partir, ela beijou sua filha:
- Bom trabalho, minha querida, bom trabalho.

* * *
Miss Ross avançou, titubeante, pelo largo salão. No final dele, havia uma mesa e uma poltrona de espaldar alto, virada para a janela.
Quinze metro depois, Miss Ross parou, ao pé da mesa.
- Então ela nos venceu, não é mesmo? Uma menina nos venceu... – disse a voz atrás da poltrona.
- O segredo do mercado de ações é justamente o segredo, senhor. Quando souberam como agíamos e quando souberam como estávamos implantando boatos, ficou impossível continuar. Tivemos de pedir falência.
- Isso significa prejuízo, não é mesmo?
- Sim, senhor.
- Tudo por causa daquela potranca?
- Isso mesmo, senhor.
- Sabe o que fazemos com pontrancas que não se deixam domar?
- O que, senhor?
A poltrona se virou, revelando um homem baixo, de orelhas grande, rosto de chimpanzé e chapéu de cowboy.
- Nós sacrificamos, Miss Ross. É isso que fazemos com potrancas que nos dão trabalho.
A mulher sentiu um esgar de morte. Sua garganta se fechou e tremores percorreram seu corpo. Suas pernas bambearam e ela caiu, estrebuchando.
O homenzinho ficou em pé, para olhar por cima da mesa, enquanto dizia, divertido:
- A vida é um rancho, Miss Ross. É o que dizemos lá no Texas!

3/19/2006



OS ANJOS
EPISÓDIO 4 – SETE HORAS

Eram sete horas da manhã.
Ele acordou com a mãe sacudindo-o e dizendo que ele se atrasaria para a escola.
Eram sete horas da manhã.

* * *

O homem tirou a venda e as trevas que enchiam seus olhos se transformaram em luz, mas isso não alegrou Cristina. Ela tentou falar, gritar por socorro, mas uma fita adesiva em sua boca só lhe permitia alguns gemidos.
Cristina estava sentada em uma cadeira de madeira, as mãos amarradas ao encosto.
Acostumando seus olhos à claridade, ela olhou à volta, tentando se situar. Percebeu que estavam em uma espécie de porão. Não havia janelas, apenas uma porta, logo à sua frente. O chão era de madeira envernizada, velha, mas em bom estado.
Um cheiro forte e decrépito tomava o ambiente.
Uma lâmpada incandescente, acima de sua cabeça, era a única iluminação.
Olhando para um dos lados do porão, ela viu seu raptor e teve um calafrio. Era um homem calvo, vestido de preto, com óculos escuros. Não tinha sombrancelhas e seus lábios eram muito finos e brancos, como se não corresse sangue em seu corpo. “Talvez ele esteja morto”, pensou. Mas ele estava vivo e sorria para ela um sorriso estranho, demoníaco.
Do outro lado, havia uma cama. No lugar do colchão, um estrado de faixas de borracha entrelhaçadas. Amarrada sobre a cama estava uma mulher loira, de cabelos anelados desalinhados e longos. Estava nua e sua pele estava branca como se há muito tempo não visse o sol.
Ao pé da cama, presa a uma coleira e uma corrente fixada na parede, estava outra mulher, de quatro. Tinha traços orientais e cabelos pretos muito curtos, mas cortados por um cabeleireiro inábil. Também estava nua e sua pele era ainda mais branca que a da outra.
- Seja bem vinda à sua nova casa. – disse o homem de preto, e seu sorriso se tornou ainda mais doentio.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele colocou as calças com os olhos fechados e quase dormiu de novo enquanto calçava as meias.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos ficou alguns segundos estático, parado com o papel na mão: VOCÊ NÃO SABE ONDE ESTÁ A SUA MULHER.
Suas mãos crisparam contra o papel, amassando-o e transformando-o em uma bolinha. Então jogou-o no chão e se afastou dele como se estivesse contaminado. Foi andando de costas, na direção da porta, as lágrimas escorrendo de seu rosto.
Quando chegou ao quintal, alçou vôo, gritando como um louco. Ficou lá em cima, rodopiando entre as nuvens e gritando.
Depois começou a voar em desespero por todos os locais, rastreando os sons na tentativa de encontrar sua esposa, até perceber que isso era inútil.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele usou o tato para amarrar o cadarço dos sapatos enquanto a mãe se despedia dele e saía pela porta.
Eram sete horas da manhã.
* * *
O homem parou de sorrir e olhou para as duas mulheres nuas.
- Deixe-me apresentá-la a suas novas colegas. Vocês passarão muito tempo juntas. São as minhas cachorrinhas, e você logo será também.
Ele se aproximou das mulheres e, abaixando o tronco, acariciou a cabeça da mulher no chão. Ela fez-lhe festas e lambeu sua mão.
- Esta é Sereia. As pessoas do interior gostam de batizar seus cachorros com nomes marinhos como forma de prevenir contra a hidrofobia. Eu gosto disso, acho poético, não é mesmo, Sereia?
A mulher respondeu com um som que parecia um latido.
- Eu capturei Sereia há cinco anos e levei mais de dois anos para domesticá-la. É um trabalho lento, de condicionamento. Demorado, mas compensa. É preciso muito cuidado, inclusive com a saúde. Devo compensar a falta de sol com vitaminas, mas isso não impede a brancura da pele. Seria, de fato, um inconveniente, se eu não gostasse assim.
Ele ficou novamente ereto, sentou no estrado da cama e tocou na mulher que estava amarrada. Ela afastou a perna com repugnância, como se tivesse sido tocada por uma cobra.
- E esta é Pérola. Eu há capturei há um ano e ela está em treinamento. Ela fica amarrada o tempo todo, mas eu a solto uma vez ao dia para que ela se acostume a andar de quatro e, ao mesmo tempo, se exercite. Pérola é um pouco arredia e seu treinamento vai durar muito. Talvez eu me canse dela antes disso e faça com ela o que fiz com as outras. Você pode sentir o cheiro? Pode ouvir os ossos estalando? Elas estão aí, embaixo de você. Aquelas que me desobedeceram...
E o homem de preto olhou para o chão debaixo da cadeira.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele lavava o rosto quando ouviu um guincho fino, como de borracha sendo arrastada por uma superfície sólida e áspera. Depois o grito de uma mulher e o som seco de ossos se quebrando. A voz de sua mãe.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos aterrissou no quintal de sua casa e entrou pela porta da frente, que havia ficado aberta. Penetrou na sala e deparou-se com uma foto de Cristina acima da televisão. Aproximou-se e tocou-a com o dedo, cuidadosamente, como se lidasse com algo extremamente frágil, capaz de quebrar ao menor toque.
Depois, foi para a cozinha e pegou o papel amassado no chão. Abriu-o lentamente, tateando-o, tentando encontrar alguma pista tátil. Todos os seus sentidos concentravam-se no papel, à procura de algo e foi o seu nariz que encontrou algo estranho. O cheiro. Que cheiro era esse?
Marco levou o papel ao nariz, aspirou profundamente e em seguida afastou o papel, enojado. Fedor.
Que tipo de fedor? Lixo? Fezes?
Cortume.
Era isso. Cortume. Onde já Marcos já sentira esse cheiro antes? Procurou na memória.
Sua mãe. Ônibus. Fedor. Cortume.
Um dia, ele tinha oito anos, estavam no ônibus. Ele sentiu o fedor e tapou o nariz. Sua mãe lhe explicou que era o cheiro do cortume e que aquela era a rua do Cortume.
Rua do Cortume.
Marcos procurou um mapa. Rua do Cortume. Lá estava ela. No bairro do Cortume.

* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele saiu de casa correndo e atravessou a rua, o rosto molhado de água e lágrimas.
Eram sete horas da manhã.

* * *
O homem de preto se deitou sobre a mulher loira e violentou-a. Ela tentava gritar, mas era impedida por uma mordaça de couro que cobria sua boca e seu queixo.
Quando terminou, ele se levantou e deixou a mulher chorando sobre a cama. Então andou até a prateleira do outro lado do porão e pegou uma faca.
- Você deve estar se perguntando por que ainda não fiz nada com você. – disse ele, aproximando-se de Cristina. Sabe por quê? Porque quero primeiro capturar seu marido. Quero que ele veja tudo que vou fazer com você.
Os olhos de Cristina se arregalaram. Ele aproximou o faca de sua blusa e usou-a para arrancar, uma a um, os botões de sua blusa. Depois cortou os sutiã e os seios saltaram. Então Cristina sentiu o gume frio da faca passeando por seus seios e roçando em seus mamilos.
-Ele é uma pessoa especial e por isso terei um prazer especial em captura-lo. Oh, sim! Eu me esqueci! Você ainda não sabe sobre os dons de seu marido... você ainda não sabe que ele pode ouvir mais e melhor que qualquer pessoa, que pode ver como uma águia, pode sentir texturas e sabores melhor que você poderia imaginar. E ele descobriu recentemente que pode voar. Como sei disso? Vamos dizer que também tenho minhas habilidades. Ao focar uma pessoa, eu posso sentir um pouco de seu passado, presente e futuro. Eu estava na fila do banco quando houve o assalto e sei que foi seu marido que impediu o assalto. Entenda, eu só precisei juntar as peças...seu marido é um escolhido, um homem com habilidades especiais... como eu... e, o que é melhor, tem uma linda esposa...
O homem de preto levantou a faca e passou-a pela face de Cristina.
- Você deve estar pensando: se meu marido tem mesmo essas habilidades, ele irá me salvar. Vai descobrir onde estou e vai me salvar como o príncipe encantado que salva a princesa prisioneira do dragão. Mas eu tenho más notícias. Isto não é um conto de fadas... e o dragão é mais esperto que o príncipe. Eu posso sentir ele chegar. E posso me antecipar a cada ação dele. Aliás, posso senti-lo agora. Ele está chegando. Está caindo em minha armadilha!
* * *
Eram sete horas da manhã.
Várias pessoas se amontoavam ao redor do corpo. Uma mancha rubra se alastrava pelo asfalto. Ela ainda respirava.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos percorreu voando o caminho entre sua casa e a Rua do Cortume e ficou lá em cima, rastreando as casas até ouvir a voz de sua esposa gritando por socorro.
Era uma casa velha, isolada entre o cortume e um terreno baldio.
Marcos passou por uma varanda e aproximou-se da porta, pronto para arrombá-la, quando percebeu que ela estava aberta.
A porta abriu com um rangido e Marcos ouviu um murmúrio em sua cabeça: “Cuidado”.
Deu um primeiro passo e a madeira velha gemeu sob os seus pés. A voz de sua esposa, chamando por socorro continuava forte à sua frente. Um novo passo e a madeira tornou a gemer. Estava em uma sala ampla. A voz de sua esposa vinha de uma mesa, mas não havia ninguém lá.
Olhando à sua volta, ele se aproximou da mesa. Era um gravador.
Marcos apertou o stop e os pedidos de socorro cessaram. Então girou ao redor de si mesmo, os ouvidos atentos para qualquer barulho.
Um homem falando.
Onde?
Abaixo de seus pés.
A casa devia ter um porão. Marcos andou por ela, procurando a entrada. Encontrou-a na cozinha: um estreito corredor com uma escada e, no final dela, uma porta. “Não vá, não vá”, dizia a voz em seu ouvido, mas ele desceu. A madeira rangia e estalava sob seus pés. Seus ouvidos estavam atentos. O homem tinha parado de falar. Onde estaria?
Marcou abriu a porta e entrou. Viu sua esposa amarrada e amordaçada em uma cadeira e foi a última coisa que viu. Sentiu o impacto de algo duro na testa... depois dor... e então ficou tudo escuro.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele tinha certeza de que ela iria sobreviver e afagava seus cabelos manchados de escarlate, mas ela deu seu último suspiro.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos acordou desnorteado. Onde estava? Por que tudo estava tão escuro? Aos poucos, a memória foi voltando e ele percebeu que estava caído no chão. A visão demorou mais a voltar e a primeira coisa que ele viu foi o rosto de um homem calvo de óculos escuros e sorriso sarcástico.
- Não pensei que fosse tão fácil. Achava que ia me divertir um pouquinho... vamos, levante-se, seu idiota, levante-se!
Marcos se jogou sobre ele, mas o homem de preto desviou.
Com muito esforço, Marcos se levantou. Seu olhar estava embaçado, mas mesmo assim ele voou sobre o homem, que desviou no momento exato e, pegando-o pelo pé, jogou-o contra a parede.
- Vamos, me ataque! Salve sua linda esposa! Venha, seu idiota!
Marcos se levantou novamente e ficou frente a frente com seu antagonista. Tentou pegá-lo de surpresa com um soco, mas o homem desviou com facilidade, até que seu rosto foi tomado por uma expressão de dor. Ele podia antecipar cada movimento de Marcos, mas não podia prever o chute que Cristina lhe daria entre as pernas.
Marcos aproveitou o momentâneo desnorteamento do homem de preto e desferiu-lhe um golpe na cabeça. Com o impacto, ele caiu de costas no chão e Marcos caiu sobre ele, desferindo socos. Os óculos escuros quebraram e revelaram olhos azuis muito claros.
Marcos pegou-o pelas orelhas e bateu sua nuca no chão até que ele parasse de se mexer. Então se levantou e começou a chutar o homem entre as pernas e nas costelas.
Quando se cansou, foi até a esposa, ajoelhou-se, tirou a mordaça de sua boca, e abraçou-a, chorando. Choraram os dois juntos, beijando-se entre lágrimas.
Então ele se levantou e desamarrou-a. Em seguida foi até a mulher nua na cama e também a libertou. Ela olhou para as próprias mãos, não acreditando que estava livre.
A mulher no chão foi libertada da coleira, mas não se levantou. Ao contrário. Foi de quatro até o homem e preto e cheirou-o.
- Ele está...? – perguntou Cristina.
- Não. Apesar de merecer morrer, ele vai sobreviver. Agora vamos embora.
Cristina apontou para as mulheres.
- E elas?
- Vamos chamar as autoridades. Elas precisam de mais ajuda do que podemos dar.
Foram andando até a varanda. Depois Marcos levou-a voando para casa.

3/13/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 3 - PESADELO


Marcos dormia. Em seu sonho, ele era criança e tinha amigos invisíveis. Eles falavam com ele, aconselhando-o. Falavam de seus sentidos e de como ele não eram bem usados. Poderiam ser muito melhores, se ele aprendesse. Poderia ouvir melhor, ver melhor, sentir sabores que jamais havia imaginado e sentir cheiros tão frágeis que um cachorro se enganaria com eles.
Eles lhe disseram que poderia voar também... e ele voou. Seu corpo elevou-se acima do solo, voando acima das casas.
Em seu sonho, ele se lembrou de sua mãe lhe contando uma história. Uma parábola da Bíblia.
“Um senhor muito rico ia viajar”, dizia ela. “Ele chamou três de seus servos. Para o primeiro, entregou cinco talentos. Para o segundo, dois e para o último, um.
Depois de muito tempo, ele retornou e mandou chamar os servos. O primeiro chegou e disse: Senhor, investi os cinco talentos que me confiaste e com eles lucrei mais cinco. E entregou o dinheiro, mas o senhor devolveu a ele dizendo: Foste um bom servo e tens direito a teus talentos.
Então o senhor chamou o outro servo. Senhor, disse o servo, investi os dois talentos que me entregaste e ganhei mais dois. Mais uma vez, o senhor entregou todo o dinheiro ao servo, elogiando-o.
Finalmente, entrou o último servo, trazendo na mão apenas um talento. Senhor, disse o servo, fiquei com medo de ti e enterrei o talento que me deste. Aqui está.
O senhor o amaldiçoou: Eu te dei o talento para que o multiplicasse, não para que o enterrasse. Servo mal. Ficarás preso onde haja choro e ranger de dentes.”
Marcos se lembrava de sua mãe lhe contando essa história. ela estava sentada à beira da cama, falando com sua voz calma e tranqüilizadora... e no instante seguinte estava morta!
***
- Querido, o que foi?
Marcos olhou à volta, tentando descobrir onde estava. Por um instante pareceu-lhe que estava em seu quarto de infância e só percebeu o engano quando viu Cristina ao seu lado. Apesar do ar-condicionado, ele suava e sua testa estava molhada.
- O que aconteceu? Você deu um grito...
- Nada. Um pesadelo, só isso.
De manhã, enquanto tomavam café, Cristina perguntou se estava tudo bem.
- Tudo ótimo. Foi só um pesadelo...
- Bem, talvez eu tenha uma razão para deixa-lo feliz. Você chegou tão tarde ontem e depois pareceu tão interessado nas notícias sobre o fim do seqüestro do garoto, que acabei não contando...
- Contando o quê?
- Uma novidade.
- Eu sei que é uma novidade. Apenas me conte o que é.
- Eu... bem... eu estou grávida!
- Grávida?
- As minhas regras estavam atrasadas uma semana e você sabe o quanto o meu ciclo é regular. Então eu fiz um exame e deu positivo...
Marcos ficou olhando para ela, perplexo.
- Grávida...
Por alguma razão, o bilhete que recebera no dia anterior veio à sua mente: EU SEI TUDO.
- E então, não está feliz?
- Claro, estou muito feliz!
Levantou e foi beija-la. Depois ajoelhou-se e beijou a barriga da esposa.
Quando saía de casa, lembrou-se que não havia olhado a caixa de correspondência no dia anterior. Abriu a caixa e lá dentro havia contas para pagar, catálogos e uma estranha carta, sem remetente e sem carimbo do correio. Marcos estava já no ônibus quando abriu a carta e suas mãos ficaram trêmulas. No papel havia apenas uma frase: EU SEI ONDE VOCÊ MORA.
***
Maria Rita estava molhando uma toalha para colocar ao redor do pescoço quando começou a ouvir passos. Sua visão estava turva em decorrência da fumaça. Ela estava sufocada, tossindo e mal podia manter-se de pé, mas mesmo assim conseguiu distinguir um homem se aproximando dela.
- Estou aqui para salva-la. – disse o desconhecido e sua voz tinha o timbre da esperança.
- Não há como. Estamos mortos. – a voz estava embaçada pela fumaça e o esforço de falar parecia inútil. Os andares de baixo estão pegando fogo. Não há como subir. O fogo tomou as escadas. Só nos resta pular da janela, mas são dez andares...
O homem pegou em seu ombro e tranqüilizou-a:
- Não se preocupe. Você vai ser salva.
Ele pegou-a pela mão e saiu com ela do banheiro. A fumaça subia, tomando conta de tudo e tornando impossível avançar sem tropeçar ou bater nos móveis. As instalações elétricas começavam a pipocar em estalos prateados. A encanação de gás explodiu e a cozinha foi tomada pelo fogo.
Maria Rita recuou, aterrorizada.
-Vamos, se ficarmos mais tempo, estaremos mortos.
A mulher deixou-se arrastar até a sacada. Ar, ar puro. Ela respirou profundamente, aproveitando seus últimos momentos de vida.
- Segure-se em mim. – pediu o homem. Vamos sair daqui.
- Não, eu não vou pular. Prefiro morrer queimada.
Histérica, Maria Rita fechou os olhos, sentou no chão da sacada e começou a chutar a perna do desconhecido.
- Vá embora! Vai embora! Eu não vou pular!
De repente seus pés não alcançaram mais nada. Ela abriu os olhos, lutando contra as lágrimas e a ardência, procurando o homem, mas só o encontrou quando olhou para cima. Ele estava flutuando no ar, como se suspenso por linhas invisíveis e mágicas.
- Você não vai cair.- disse ele.
Ela se levantou chorando – e as lágrimas já não eram mais apenas por causa da fumaça – e se agarrou a ele. Os dois flutuaram em minutos seus pés tocavam o chão da rua. Muitas pessoas a cercaram, tentando ajuda-la. Depois de algum tempo ela olhou à volta, mas seu salvador havia desaparecido em meio à multidão.

***
Marcos chegou em casa exultante naquela noite. Ele pensava seriamente em falar para a esposa como havia salvo a vida de uma mulher em um incêndio, mas não havia ninguém em casa.
A bolsa de Cristina estava sobre o sofá, mas a casa estava silenciosa. Preocupado, ele andou até a cozinha. Havia um papel branco dobrado sobre a mesa. Marcos abriu o papel. Havia apenas uma frase nele:

VOCÊ NÃO SABE ONDE ELA ESTÁ.

3/05/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 2 – UM SONHO DE VOAR

Ele sonhou que estava voando. Seu corpo deslizava suavemente pelas partículas de ar, quebrando barreira, ignorando a gravidade. Atravessava nuvens e comungava com as estrelas, respirando liberdade...
Marcos acordou. Não abriu os olhos, mas advinhou que ainda era noite. Sentia frio, mas, curiosamente, o frio vinha de baixo, não de cima. Era como se a cama tivesse desaparecido. Lutou entre dois opostos: a vontade de continuar dormindo e a necessidade de abrir os olhos para puxar a coberta. Finalmente, abriu os olhos e espantou-se com a proximidade do teto. Era como se a parede tivesse encurtado. Teve, então, a idéia de olhar para baixo e descobriu o que realmente estava acontecendo: ele estava flutuando quase meio metro acima do colchão. O lençol se elevara com ele, mas continuava cobrindo Cristina.
Marcos entrou em desespero, mas ouviu uma voz sussurrando em seu ouvido, acalmando-o.
Ele desejou estar de volta à cama e, como se respondesse a um comando secreto, seu corpo foi descendo até ser depositado calmamente no chão.
***
No banco, no dia seguinte, Marcos deparou-se com os colegas lendo as manchetes do Gazeta Popular. Pediu para dar uma e leu, enquanto um colega dizia “Só faltava essa!”.
LADRÕES DORMEM DURANTE ASSALTO
Dois menores, que assaltavam e tentavam violentar uma mulher na quinta-feira à noite, no bairro de São Francisco, dormiram enquanto praticavam o crime. A vítima também dormiu. Os dorminhocos foram encontrados ontem de manhã pela polícia, depois de denúncias de vizinhos. Entrevistados, os acusados disseram que não sabiam o que havia acontecido. É, pelo jeito o assalto estava tão monótono que deu sono...
- Era só o que faltava, hein? Ladrão dormindo no serviço. – disse um colega.
- Olha só quem fala! Até parece que você não dorme no banheiro. – lembrou outro.
- Aquilo não é sono, é meditação.
Nisso o vigilante se aproximou.
- Seu Marcos, deixaram um bilhete para o senhor.
E entregou um pedaço de papel dobrado e grampeado, com seu nome em um dos lados.
- Como assim? Quem deixou?
- Não sei. Devem ter jogado por debaixo da porta... tem seu nome aí.
Marcos abriu o grampo. Havia apenas uma frase, em letras maiúsculas:
EU SEI TUDO.
Marcos dobrou o papel e colocou-o no bolso, olhando à volta para se certificar de que ninguém mais havia lido seu conteúdo.
- O que foi? – perguntou um amigo.
- Nada, trote.
- Sei, viu a história do garoto que foi seqüestrado?
- Garoto seqüestrado?
- Onde você estava, na lua?
- Que garoto?
- Seqüestraram o filho de um comerciante. O garoto tem cinco anos. Estão pedindo três milhões. O pai diz que não tem esse dinheiro. Eles cortaram um dedo do garoto e mandaram para o pai...
- E a polícia?
- Nenhuma pista. Agora vamos para o trabalho que o gerente está chamando...
***
À tarde, quando saiu do trabalho, Marcos pegou um ônibus que não pegava normalmente. Ele sabia que, com isso, ia dar uma volta muito maior. Mas não se importava. Era como se vozes o influenciassem em sua decisão.
Quando chegou a um terminal, pegou outro ônibus e foi à janela, atento aos sons que chegavam da rua. Era uma miríade de sons variados que se misturavam num todo caótico, que Marcos separava em pequenas partes e as analisava uma a uma. Ele ouviu cachorros latindo, ouviu o choro de bebês, ouviu um casal brigando por causa de um controle remoto, ouviu um fusca velho tossindo e escarrando, incapaz de sair do lugar.
De vez em quando ele ouvia uma música agradável e concentrava a atenção nela, mas depois voltava a rastrear os sons, como se procurasse a sintonia no dial de um rádio.
Já estava muito longe de casa e do banco quando ouviu algo que chamou sua atenção. Desceu na parada seguinte. Ia concentrado, com medo de perder a voz na qual estava concentrado.
Finalmente parou na frente de uma casa que parecia abandonada. Mas não estava, como atestava o cadeado novo na grade do portão. Era uma casa ampla, de classe média, com telhado de telhas de barro.
Marcos olhou para o lado, para se certificar de que não havia ninguém na rua, e então se elevou no ar. Pousou sobre o telhado, com cuidado para não fazer barulho. Levantou uma das telhas e olhou para baixo. Era um quarto pequeno, com a porta trancada. Tinha um garoto ali, sentado em um cama com os braços enlaçados nas pernas dobradas. O garoto chorava e tremia.
Marcos recolocou a telha no lugar e se elevou no céu, descendo novamente em outra rua, ao lado de um orelhão. Fez uma ligação, utilizando o último crédito de seu cartão, e voltou a a se elevar no céu. Quando pousou novamente, estava sobre o telhado da casa. Procurou a telha que havia retirado antes e afastou-a. depois outra e outra, até abrir um espaço suficiente para poder entrar.
O garoto ouviu o barulho e olhou para cima. Marcou levou o dedo médio aos lábios, em sinal de silencio, e piscou para ele.
- Vou tira-lo daqui. – disse, pousando ao lado da cama.
Os olhos do garoto brilharam.
- Meu pai mandou você?
- Eu sei quem foi. Minha avó. Ele apareceu num sonho e disse que um anjo ia me salvar.
- Silêncio agora.
Marcos pegou o garoto no colo e começou a flutuar no ar, na direção do buraco no teto. Nisso ouviu o barulho de um trinco e o rangido da porta.
- Ei, o que está acontecendo?
O homem sacou uma arma e começou a atirar, mas Marcos e o menino já tinham desaparecido. Ouvia-se sirenes.
***
À noite, Marcos assistia o noticiário com a esposa. A principal notícia era a libertação do garoto.
REPÓRTER: O garoto foi liberado depois de 40 dias de cativeiro. O seqüestro teve momentos dramáticos, como quando os pais receberam uma caixa com o dedo do menino, mas acabou bem. O cativeiro foi descoberto graças a uma denúncia anônima, mas quando a polícia chegou ao local, Rodrigo já havia fugido e estava a duas quadras de distância. Estamos aqui com o delegado responsável pelo caso. Delegado, como o menino conseguiu fugir?
DELEGADO: Realmente não sabemos. Aparentemente ele fugiu pelo telhado, mas a parede era muito alta e não havia nada para ele subir. É um mistério...
REPÓRTER: O que o garoto diz?
DELEGADO: Ele afirma que foi salvo por um anjo enviado pela avó. Essas fantasias infantis são comuns em casos de stress como esse. A pessoa cria uma fantasia para fugir da realidade.
REPÓRTER: Rodrigo passou por uma avaliação psicológica?
DELEGADO: Sim, e ele estava calmo, apesar do que aconteceu. Achamos que a fantasia do anjo e a lembrança da avó morta o ajudaram a lidar com a situação.
REPÓRTER: Obrigado, delegado. Voltamos agora aos nossos estúdios.
ÂNCORA: É, parece que temos um anjo cuidando da cidade....