4/14/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 6 – O HOMEM QUE CONTROLAVA O TEMPO



Marcos e Antônio acordaram lado a lado e olharam-se, atônitos.
Estavam no meio de escombros de uma velha construção em ruínas. O cheiro forte de urina misturava-se ao aroma acre da madeira em decomposição. Nos canto mais escuros, ratos enormes conversavam entre si com guinchos que pareciam choro de bebês.
- O que... o que estamos fazendo aqui? – perguntou Antônio.
Marcos passou a mão na nunca, tentando afastar uma leve dor de cabeça.
- Não sei. Aliás, que lugar é esse? Não me lembro de nada...
- Vamos, vamos sair daqui...
Quando atravessaram a porta, Antônio reconheceu o local.
- Ei, parece o Palacete Paris. Cara, como está, pode não parecer, mas essa é uma das construções mais lindas da cidade... se eu tivesse bastante dinheiro, usava para restaurar este local...
- Tá, só se você ganhasse na loteria...
- Bem, não custa nada sonhar, não é mesmo?
E se afastaram pela rua, de volta para suas casas e para suas vidas. Na praça, o relógio marcava sete horas da noite. Os relógios de Marcos e Antônio também marcavam sete horas...

* * *
Marcos viu-se de repente no meio da rua. Ele imaginava onde Antônio teria comprado o relógio. Havia um sebo duas ou três quadra abaixo do banco. Depois de alguma procura, encontrou-o. Era uma casa simples, com portas de correr. O espaço era comprido, mas estreito, organizado com uma divisória. Na parte externa ficavam os livros, no fundos, objetos antigos.
Marcos foi direto para os fundos. Alegrou-se ao ver que o relógio ainda estava lá, na parte mais baixa da prateleira, escondido atrás de uma mesa de madeira.
O velho, comodamente sentado no balcão, na entrada da loja, pediu 100 reais, mas Marcos pechinchou até chegarem a 50 reais.
Saiu da loja com o objeto nos braços e procurou uma rua deserta. Assim que se viu longe dos olhos de qualquer pessoa, levantou vôo. Atravessou a cidade até a lixeira e soltou o relógio. A queda de dezenas de metros destroçou o objeto, fazendo com que suas partes, mecanismos e engrenagens se espalhassem em meio ao lixo. Então tudo virou inconsciência.

* * *

Antônio pegou na caixa de madeira do relógio com uma certa reverência, como se manipulasse um objeto sagrado. Então abriu uma portinhola lateral e dela sacou uma manivela, que girou sob sua mão, num rangido de protesto.
Fez isso e afastou-se dois passos, ficando ao lado de Marcos.
O relógio tiquetaqueava e seus ponteiros giravam sem lógica ou ordem, como se houvessem enloquecido. O ponteiro de horas ia para a direita, o de minutos para a esquerda e o de segundos, ora para a esquerda, ora para a direita.
Marcos olhou o objeto atentamente, concentrado. Uma imagem começou a se formar. O local era conhecido: uma rua de Santa Helena. A pergunta era quando.
Sem esperar uma resposta, Marcos pulou sobre a imagem e desapareceu, para espanto do amigo.

* * *
Antônio olhou, divertido, para o amigo. Seu rosto normalmente sério parecia ter passado por uma espantosa mutação que revelava um menino feliz e empolgado.
- Você sabe de minha paixão por sebos.- começou ele. Adoro livros usados. Um dia eu estava em um sebo quando vi o relógio. Por alguma razão, fiquei fascinado por ele e decidi comprá-lo. O homem da loja queria cem mangos, mas consegui convencê-lo a aceitar cinqüenta. Quando caminhava com ele de volta para casa, eu me perguntei porque estava tão nervoso. Por que minhas mãos estavam tremendo? Por que meu coração pulsava como se eu fosse ter um ataque cardíaco? Assim que cheguei, coloquei o relógio sobre a mesa e comecei a mexer nele. Descobri uma manivela. Talvez se eu a girasse, poderia fazê-lo voltar a funcionar. Então algo estranho aconteceu. Uma espécie de halo de luz se abriu em leque, acima do relógio. Por alguma razão, eu me lembrei de um fato específico. Eu era jovem e tinha ido ao médico do INSS. Cheguei lá umas cinco e meia da manhã, mas já não havia mais senhas, então eu fiquei caminhando pelas ruas desertas. Quando amanheceu, eu me sentei em um banco de praça e comecei a ler o livro que tinha levado, sentido a neblina me envolver, o orvalho das plantas se evaporando e se elevando até as minhas narinas. O livro era A máquina do tempo, de H.G. Wells. Para meu espanto, a cena se projetou na luz à minha frente. Não era como uma projeção de cinema, era como olhar por uma janela. Percebi o que era o relógio e como controlá-lo. O resto é óbvio. Eu fui ao futuro e descobri quais seriam os números sorteados na Loto. Agora estou milionário.
- Pode me mostrar como funciona? – perguntou Marcos.

* * *
Marcos olhou-o intrigado, tentando entender a situação.
- E o tempo não é absoluto?
- Não. Nem de longe. Einstein demonstrou que o tempo é relativo. O mesmo fenômeno, visto por duas pessoas diferentes, pode estar acontecendo em momentos diferentes. O tempo também é influenciado por forças como a gravidade e a velocidade. Se você estiver viajando à velocidade da luz, o tempo passará mais lentamente para você. Da mesma forma, o tempo passa mais lentamente em locais com alta gravidade. Imagine como deve ser o tempo em um buraco negro!
- E o que isso tem a ver com o relógio e a mega-sena?
- Esse relógio é uma espécie de observatório privilegiado para o qual se volta a relatividade do tempo,uma espécie de vórtice no tempo-espaço....
- Você usou-o para descobrir qual seria o resultado da loteria?
- Imagine as possibilidades fantásticas que esse aparelho representa!
- E o perigo também...
- Perigo?
- Todos os relógios parecem ter enlouquecido... talvez você tenha mexido com algo que... eu não sei... uma espécie de equilíbrio muito delicado...
- Bobagem. Qualquer que seja o equilíbrio que o universo precisa, duvido que o que fiz vá mudar alguma coisa... além disso, há uma tendência universal para a homeostase, para o equilíbrio. - argumentou Antonio.
- Nem todos os sistemas tendem para o equilíbrio. Talvez o tempo tenha uma tendência mais entrópica, caótica... – rebateu Marcos.
Calaram-se, como se tivessem chegado a um impasse.
- É apenas um observatório, ou é possível participar do que está sendo mostrado?
- É possível também participar, o que é muito perigoso, especialmente no passado. Conhece o paradoxo do pai e do filho?
- Sim, um homem volta ao passado e mata seu pai antes que ele se case com a sua mãe. Assim, ele nunca teria nascido e, portanto, jamais poderia voltar ao passado para matar seu pai... onde arranjou o relógio?

* * *
Dois meses depois, Gabriel resolveu visitar Antônio. Este recebeu-o com a alegria de uma criança que ganha um brinquedo novo e tem finalmente alguém para mostrá-lo.
Antes de entrarem, Antônio mostrou-lhe a fachada da casa, as grades, o pequeno parapeito no segundo andar, sob o qual havia insuspeitos relevos.
- A ma ioria das pessoas jamais teria a idéia de olhar para cima, mas os construtores prepararam esse pequeno presente para o sortudo que tivesse essa visão privilegiada. – explicava Antônio, com indisfarçável entusiasmo. É tudo uma obra-prima, das linhas arquitetônicas aos pequenos detalhes.
Então entraram e percorreram a sala, a copa, os quartos... Antonio mostrava tudo e gabava-se da rapidez com que havia terminado a reforma.
Ele deixou por último um quarto no segundo andar. Era fechado à chave e Antonio trazia a chave na cintura.
- O que vou mostrar a você, poucas pessoas já viram. Nem sei porque vou mostrar-lhe. Talvez porque eu saiba que você é uma das poucas pessoas capazes de compreender.
Era um quarto vazio, exceto por uma mesa e, sobre ela, um relógio antigo, de madeira.
- E então? – perguntou Marcos.
- E então? – espantou-se Antônio, como se o outro não conseguisse ver o óbvio. O relógio!
- Parece ser uma raridade, mas não compreendo porque todo esse mistério... você o comprou há pouco tempo?
- Não, há mais de dois meses...
Marcos franziu o cenho.
- Então não é uma relíquia. Há dois meses você era tão pobre quanto eu.
- Na verdade, esse relógio é a razão pela qual hoje eu tenho tanto dinheiro...
- Como assim?
Marcos aproximou-se e tocou o objeto.
- Como assim?
- O tempo é a chave. Ou pelo menos a noção que temos de tempo. Newton achava que o tempo era um valor absoluto. Ou seja, ele permaneceria o mesmo em todos os locais e situações. Ele caminharia da mesma maneira, estivesse você em Marte ou no quintal de sua casa....
* * *
Antonio não foi mais ao banco. Estava muito ocupado com a realização de seus sonhos. Fazia questão de inspecionar pessoalmente as obras de restauração do Palacete Paris. A imprensa noticiava isso como uma espécie de excentricidade, que logo deixou de provocar interesse no público. O assunto principal passou a ser outro: a desregulagem do tempo. Relógios atrasando ou adiantando-se tornaram-se cada vez mais freqüentes. Até a programação da TV e do rádio ficou prejudicada. Programas começavam sem que seus locutores tivessem chegado, anúncios locais entravam em cima da programação nacional... todos os relógios pareciam estar loucos.

* * *
No final da tarde, Marcos levou o relógio ao relojoeiro. Era um velhinho simpático e falador. Marcos espantava-se com sua coordenação motora, o modo com, apesar da idade, manipulava peças minúsculas.
- Hoje foi o dia. – disse o velhinho. Nunca trabalhei tanto na minha vida. Parece que todos os relógios da cidade resolveram adiantar, ou atrasar... até o ponto que já não sei mais qual relógio está marcando a hora certa.... bem, não parece haver nada de errado. Vou fazer apenas uma limpeza. Se ele continuar com problemas, traga que só vou cobrar se for necessário trocar uma peça...
Marcos agradeceu, pegou o relógio e foi para casa.

* * *
Marcos chegou apressado ao banco, temendo estar atrasado, mas mesmo que estivesse mesmo atrasado, pouco notariam isso. O local estava um alvoroço de balões (restos do aniversário de um funcionário), sorrisos e saudações. No centro das atenções, Antônio Simões, um funcionário tímido, de óculos de aro preto, uma calvície avançando perigosamente pela já rala cabeleira. Era estudante de artes em uma faculdade particular à noite. Uma das poucas pessoas com as quais Gabriel gostava de conversar.
- O que está acontecendo?
- O que está acontecendo? – espantou-se alguém. Onde você estava? Na Lua? Você está diante do mais novo ganhador da mega-sena...
- Acumulada! Mega-sena acumulada! – ajuntou alguém.
- E quem é o felizardo? - indagou Marcos, sorrindo.
Todos apontaram para Antônio.
Gabriel deu-lhe um abraço.
- Cara, você?!
- É, eu sabia que ia ganhar...
Pipocaram os gritos de “Modesto”, “Sortudo”.
- E agora, o que você vai fazer com o dinheiro?
- Bem, antes de mais nada, quero realizar um velho sonho. Já ouviu falar do Palacete Paris?
- Sim, claro, está abandonado...
- Mas é a construção arquitetônica mais bela de Santa Helena. Vou compra-lo e restaura-lo!

* * *
A primeira coisa que Marcos percebeu quando desceu do ônibus é que seu relógio estava atrasado. O relógio da praça marcava 8:50, e em seu relógio eram apenas 8:30. Ele parou ao lado de uma banca de jornais para acertar o relógio e aproveitou para olhar as manchetes. A Folha de Santa Helena e a Gazeta de Santa Helena traziam informações sobre política, especialmente sobre as próximas eleições, mas a Gazeta Popular trazia um fato curioso: um ganhador da mega-sena acumulada era de Santa Helena. Os outros dois jornais também traziam a informação na capa, mas com menor destaque.
“Milhões de reais”, pensou Marcos. “Viria bem a calhar, ainda mais agora, com Cristina grávida”.
Então olhou o relógio da praça e espantou-se: eram 9:10 e ele estava atrasado, mas não parecia terem se passado vinte minutos. Olhou para o seu próprio relógio e ele marcava 8:35.
“Os relógios estão doidos”, pensou, correndo para o banco.

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