9/22/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 11 – UM FANTASMA EM CASA


Marcos e Cristina estavam tomando café quando Seu Antunes chegou. Veio sorridente, apesar das olheiras. Vestia roupas novas e trazia uma sacola da loja Girassol.
- Um presente para minha nora querida. – disse ele, estendendo o pacote para Cristina.
Meio sem jeito, ela tirou de lá uma bela camisola vermelha, de renda. Não era uma peça recatada, mas sensual.
- Seu Antunes, estou grávida, essa camisola...
- Não diga nada. Sua barriga ainda não cresceu tanto assim e quero que você esteja bem bonita para meu filho. – disse Antunes e piscou para Marcos. Agora vocês vão me dar licença, que vou lavar o rosto...
Cristina ficou apreciando a camisola, sob o olhar de censura do marido.
- Por que essa cara? É só um presente! E você é muito certinho... vai me dizer que está com ciúmes de seu próprio pai!
- Não é isso, é uma espécie de intuição...
Nisso Antunes voltou do banheiro.
- Oh, vejo que tem café...
Cristina concordou com um sorriso:
- Acostumei a passar café para o senhor. Não custa nada.
- Você é um anjo, meu amor. – e deu uma bitoca na testa da nora.
- Agora preciso sair para comprar algumas verduras antes de ir ao trabalho...
- Nada disso. Deixe uma lista que eu compro...
Cristina fez menção de mexer na carteira para tirar dinheiro, mas o sogro recusou, indignado:
- O que é isso? Estou aqui, de favor na casa de vocês e não posso fazer umas compras? Pode deixar a lista que, quando voltar, vai estar tudo aqui...

***
Marcos voltou mais cedo que de costume para casa. Talvez por causa do fiasco da noite passada, não estava muito disposto a fazer uma ronda noturna.
Encontrou Cristina no quarto, enxugando-se com uma toalha e passando creme no corpo. Desde que engravidara, aquele ritual repetia-se diariamente.
- Onde está o meu pai?
- Ele saiu, mas fez as compras e deixou tudo arrumado. Até deu uma ajeitada na casa...
Cristina espalhava lentamente o creme pela barriga já um pouco proeminente, como seu acariciasse o seu bebê.
- Não sei. Eu ainda não consigo confiar nele... – começou Marcos.
- Você ainda está muito abalado com tudo que tem acontecido e não consegue ver o bom homem que é seu pai. Vê como ele é solícito? Não há nada que eu peça a ele que ele não faça...
- É justamente isso. Ele é solícito demais... ninguém faz nada de graça.
- Você está ficando amargo. Onde está o homem com quem eu casei, o homem gentil, que acreditava que todas as pessoas são boas?
Cristina estava de costas para ele e espalhava o creme pelas nádegas. Marcos sentiu um cheiro estranho. Cebola.
- Cristina, você comeu cebola hoje? Salada ou algo assim?
- Não, hoje eu não comi nada com cebola. Não que eu saiba. Por quê?
Marcos respirou fundo. Cebola. E suor. Não era seu próprio suor. Não podia ser de Cristina, que acabara de tomar banho. Ela exalava uma mistura de sabonete, água, xampu e creme. Havia também um outro cheiro... cafeína.
- O que foi? – indagou Cristina.
Marcos não respondeu. Estava parado, olhando à volta, aguçando os ouvidos como um cachorro caçador.
- O que foi? – tornou Cristina.
De repente ele captou um som, como se sintonizasse uma estação ao girar o dial.
Uma respiração.
Marcos girou, avançando na direção do nada e agarrando o ar. O nada respondeu com um som surdo e engasgado.
Por instinto, Cristina cobriu-se com a toalha.
- O que foi? – repetiu ela, apreensiva.
Marcos levantou a mão esquerda e a levou para junto da outra. Seus dedos crisparam-se sobre o vazio e uma veia pulou em seu pescoço.
Usando toda a sua força, ele empurrou as mãos na direção da parede e soltou-as um pouco antes do impacto. Houve um estrondo. Um quadro com uma foto estilhaçou-se e caiu no chão.
Cristina gritou.
- Marcos, o que...
Mas não continuou. Algo começou a surgir entre a parede e o ar. Uma névoa, que foi tomando forma até se transformar em uma pessoa. Antunes.

***

Da mesma forma como surgiu, Antunes foi desaparecendo lentamente, tomado por uma névoa cada vez mais tênue. Em seu lugar ficou apenas o ar.
Cristina percebeu a movimentação de algo que não conseguia ver e seu marido se deslocando rápido para o lado. Algo bateu na porta do banheiro. Marcos avançou para o nada, agarrou algo e o jogou para a sala. Antes de chegar ao chão, o nada havia se transformado novamente em Antunes.
Caído no chão da sala, o sangue escorria de seu nariz.
Marcos agarrou-o pelo colarinho.
- Fale!
Antunes grunhiu.
- Diga que é tudo mentira o que nos contou. Diga você que você abandonou a mim e à minha mãe!
Antunes tentou reagir, mas não conseguia.
- Está bem. É tudo mentira. Eu nunca procurei por você. Eu os abandonei, mas tinha vocês sempre por perto, pois poderia ser conveniente ter um filho...
- Foi assim que me descobriu?
- Sim. Eu passava as noites nas lojas de departamento, mas precisava de um local para passar o dia.
Antunes sorriu, sarcástico.
- Cheguei a entrar aqui invisível, para observar se o local era seguro.
- Você... – disse Cristina, mas levou a mão à boca, antes de terminar, como se fosse uma verdade terrível demais para ser dita.
- Você tem uma mulher gostosa!
Marcos calou-o com um tapa.
- Deixe-me adivinhar. Você passava as noites nas lojas de departamento, roubando. Como estava invisível, os vigias não viam ninguém. Você retirava as etiquetas de segurança e no dia seguinte saía pela porta da frente, certo de que os censores não iriam detectá-lo.
- Você é muito esperto. – zombou Antunes. Descobriu isso sozinho?
- Bem, eu tenho más notícias para você. Eu agora conheço seu cheiro e posso senti-lo mesmo à distância. Nunca mais chegue perto de minha casa e nunca mais faça seus roubos, ou entrego você para a polícia... embalado para presente! Agora saia daqui!
- Eu... não posso sair nu!
Cristina desapareceu no corredor e voltou com as roupas de Antunes. Jogou-as nele e depois cuspiu em sua cara.
Antunes vestiu a roupa e saiu. Seu cheiro fedia a ódio e vingança.