1/13/2008


O PORTAL DAS PROBABILIDADES
O QUE NUNCA ACONTECEU IA SE TORNAR REALIDADE
UMA AVENTURA DE PERRY RHODAN


Gian Danton

“Na vida cotidiana, a característica lorenziana da dependência sensível das condições iniciais paira sobre tudo. Um homem sai de casa, de manhã, 30 segundos mais tarde, um vaso de planta deixa de acertar sua cabeça por uns poucos milímetros, e em seguida ele é atropelado por um caminhão. Pequenas perturbações no trajeto diário de uma pessoa podem ter grandes conseqüências”.
James Gleick, Caos – a criação de uma nova ciência


Personagens:

Perry Rhodan – o astronauta que não mudou o destino da humanidade
Gucky – o rato castor que faz a descoberta catastrófica
Reginald Bell - que não aceita estar morto
John Marshall - que conta uma história inacreditável


PARTE I


- Alô, Gucky! Você está aí?
- Não adianta, senhor. O rato-castor não responde.
Perry Rhodan recostou-se na cadeira de comando, pensativo. A Stardust havia passado por acaso próximo a um planeta desconhecido e quando os instrumentos detectaram uma anomalia no espaço-tempo, o rato-castor se ofereceu para investigar. Vestindo seu traje espacial, ele desapareceu da Stardust e entrou na atmosfera do planeta desconhecido. Desde então ele não fizera nenhuma comunicação. Isso acontecera há mais de uma hora.
Rhodan olhou para John Marshall. O telepata estava com ele há muitos anos e fora um dos primeiros membros do exército de mutantes. O Administrador Solar era munido de um bloqueio telepático que impedia Marshall de ler sua mente, ainda assim ele sabia exatamente o que o outro estava pensando.
- Sinto muito, senhor. Não consigo captar nenhum pensamento de Gucky. É como se ele não estivesse pensando...
- Ou como se algo estivesse impedindo seus pensamentos de chegarem até nós.
- O que faremos, Rhodan? Não podemos deixar aquela bola de pêlos lá embaixo.
Quem conhecesse Reginal Bell apenas superficialmente poderia achar que sua relação com Gucky não era das melhores. Entretanto, era em momentos como este que Bell demonstrava a grande amizade que tinha pelo rato-castor.
- Eu realmente não sei. Não posso ameaçar a tripulação da Stardust descendo no planeta. Mas também não posso abandonar nosso amigo...
Nisso o comunicador guinchou estridentemente.
- Per... Rho...aqu... Gucky!...
- Há uma interferência na mensagem, senhor. – explicou o oficial de comunicação.
- Tente melhorar a mensagem. E rastreie o sinal. Quero saber onde está Gucky.
A mensagem continuou:
- Você... e... gorducho... precisam ver isto... descer... aqui...
- Gucky, volte para a nave! – ordenou Rhodan, mas a comunicação já havia sido interrompida.
Houve um profundo silêncio na sala de comando. O Administrador-solar apoiou o queixo na mão, pensativo. Finalmente decidiu:
- Vamos descer! Preparem um planador. Marshall, você e Bell vêm comigo.
- Não, Rhodan! Não sabemos o que há lá embaixo. Você não deve ir conosco!
Rhodan pousou a mão sobre o ombro de Bell e falou calmamente:
- Bell, naquele dia, na Lua, tempos atrás... nós não sabíamos o que havia no lado negro. Era perigoso, mas nós fomos. Então encontramos Crest, Thora e a nave arcônida. Se tivéssemos deixado o medo nos dominar, não estaríamos aqui agora. Se aceitamos o desafio, aceitamos também os riscos. Agora vá se aprontar.

* * * * * * *
A nave deslizou suavemente na atmosfera do planeta. Nenhum instrumento parecia apresentar comportamento defeituoso, exceto pelo comunicador.
Rhodan ia nos controles. Embora tenha se tornado um administrador, ele ainda era um astronauta. No fundo ele sabia que Bell estava certo: a missão era de fato arriscada e ele, como Administrador Solar, não deveria participar dela. Entretanto, a sede de aventura acabou falando mais alto que a razão.
- Senhor, estamos nos aproximando do ponto indicado pelo rastreamento. – informou Marshall.
O monitor da nave mostrou uma vasta área da cidade em ruínas. As construções tinham aspecto de terem sido um dia bastante sólidas e deviam ter feito parte de uma grande civilização. Mas como uma civilização como aquela poderia desaparecer daquele jeito?
- Olhem, é Gucky! – Bell apontou para um ponto na imagem.
Lá estava o Rato-castor sobre uma coluna caída, acenando para os terranos.
Rhodan aterrissou próximo da coluna e abriu a comporta. O rato castor os recepcionou mostrando seu enorme dente de roedor.
- E aí, como vai, gorducho? Pensei que seu peso fosse derrubar a nave...
- Ora, seu...
Bell avançou, mas uma força invisível o segurou e o levantou um pouco acima do solo.
- Melhor esfriar a cabeça, gorducho. Vai precisar dela quando eu mostrar o que encontrei.
- Desça-o, Gucky! – ordenou Rhodan.
- Você é que manda, chefe. – concordou Gucky, retirando o controle telecinético sobre Bell, que desabou no chão.
Bell ainda estava limpando a poeira da roupa quando o grupo avançou, guiado por Gucky.
- Afinal, o que você achou, Gucky?
- Ainda não sei, mas pode ter certeza de que é algo importante.
- O que você achou pode ter sido o responsável pela destruição desta civilização? – Rhodan apontou para as ruínas ao seu redor.
- Acho melhor vocês mesmo verem.
O grupo parou em frente a um prédio imponente. Parecia uma espécie de Museu e, o mais surpreendente, estava muito conservado. Lá dentro, no salão principal, havia um portal de aproximadamente três metros. Não era feito de pedra, plástico ou qualquer outra substância conhecida.
- O que acha disso, Bell?
- É estranho, muito estranho. Parece ser mais antigo que o povo que construiu esta civilização.
- Há mais uma coisa estranha. – observou Gucky. Este é o único prédio intacto de todo o planeta. Mas há outra coisa, vejam...
O rato-castor passou o dedo por um móvel e mostrou para os outros.
- Estão vendo?
- Não estou vendo nada! – admitiu Bell.
- Isso é que é o estranho. Este é um planeta de ruínas. Este Museu, ou o que quer que seja, deveria estar repleto de poeira, mas está tudo limpo.
- É como se o tempo não tivesse afetado este lugar. – raciocinou Rhodan.
- Isso mesmo.- concordou Gucky.
De repente o portal começou a emitir uma estranha luz. Ela foi se tornando cada vez mais forte e com o tempo a terra começou a tremer.
Os quartos seres foram tomados por uma estranha vertigem. Súbito tudo ficou escuro. Era como se tivessem desmaiado.
Rhodan foi o primeiro a acordar. Uma forte dor de cabeça parecia impedir seus pensamentos. Ele olhou à volta: nada parecia ter acontecido a seus amigos. Estavam inconscientes, mas vivos. Gucky abriu os olhos e levantou o corpo. Suas mãos apertavam a cabeça.
- Ugh! Parece que fui atropelado pela Stardust...
Os outros foram acordando aos poucos. Logo estavam todos de pé.
- Vamos embora daqui. – sugeriu Rhodan. Não sabemos o que está acontecendo e não quero mais surpresa.
Os outros concordaram. Foram caminhando na direção da porta, os trajes espaciais e a dor de cabeça dificultando seus passos. Quando abriram a porta, depararam-se com o inacreditável.
Não estavam mais no planeta desconhecido. Estavam na Terra, em Washington... e a cidade estava em ruínas!

PARTE II

Certa vez, muitos anos atrás, houve um homem extraordinário. Ele viajou à Lua e lá encontrou uma nave de uma civilização moribunda.
Esse homem mítico voltou à Terra, trazendo verdadeiros presentes do céu.
A nova tecnologia permitiria ao homem viajar pelo espaço e conquistar as estrelas.
Mas a humanidade não ficou satisfeita.
Embora o homem tenha impedido um guerra que acabaria com toda a vida sobre o planeta – e talvez por isso mesmo – eles o perseguiram. Esse homem foi considerado o inimigo número um da humanidade.
Isso foi há muito tempo.
O nome do homem era Perry Rhodan.
Entretanto, houve pessoas que acreditaram nele, no ideal de uma sociedade unida em torno de um sonho espacial.
Eu fui uma dessas pessoas.
Eu... John Marshall.
O homem venceu e sob sua liderança a humanidade lançou seus foguetes para todos os planetas do sistema solar e depois para além... muito além...
Surgiram outros inimigos, mas nada conseguiu abalar aquele homem com voz de trovão e pensamentos inescrutáveis.
Ainda me lembro de quando o vi pela primeira vez em um restaurante. Ele estava calmo, fleumático, seguro, apesar do perigo que corria.
Foi exatamente assim que ele ficou quando descobriu que o sonho havia acabado... que anos e anos de trabalho haviam sido reduzidos a nada.
Mesmo quando todos nós perdemos a esperança, ele permaneceu firme.
Afinal, esse homem é Perry Rhodan.
Acho que devo contar a coisa desde o início.
Quando atravessamos a porta do Museu, encontramos uma cidade em ruínas. Aqui e ali havia marcas de sombras de pessoas gravadas no concreto, como retratos macabros.
Ao caminharmos pelas ruas, encontramos uma pessoa se arrastando pelos escombros. Era uma mulher carcomida pela radiação. Já não havia qualquer vestígio de pêlos em seu corpo e ela era incapaz de falar. Eu e Gucky tentávamos retirar alguma informação de seus pensamentos caóticos quando fomos abordados por um grupo armado com metralhadoras.
Eram seres humanos, mas apresentavam queimaduras na pele e estavam envoltos em trajes anti-radioativos. Eles estranharam nossas roupas espaciais e nos obrigaram a segui-los. Gucky pretendia elevá-los no ar e fazer mais uma de suas peraltices, mas Rhodan o impediu.
- Não, Gucky! Precisamos saber o que está acontecendo. Não faça nada.
Nós seguimos o grupo. Embora o local se parecesse com a Terra, em especial Washington do século XX, não nos atrevíamos a retirar o capacete. Mil hipóteses passavam por minha mente. Teria sido a Terra descoberta por um de nossos inimigos e atacada durante nossa ausência? Será que o planeta desconhecido apenas reproduzia a superfície da Terra, confundindo-nos com sua brincadeira sem sentido?
Estávamos todos pensando nisso quando nos deparamos com um abrigo contra ataques aéreos. Nós descemos por uma escada e demos com um amplo salão.
A imagem era surpreendente: dezenas de pessoas comprimiam-se em um espaço mínimo, todas com olhar assustado, algumas nitidamente cancerosas.
Súbito houve uma agitação. O mar humano parecia se abrir para a passagem de um personagem ilustre. Primeiro surgiram dois bruta-montes, que abriam caminho a cotoveladas. Atrás deles veio... Alan d. Mercant! Todos se ajoelhavam ao vê-lo, como se temessem ser castigados caso não o fizessem.
Reginal Bell avançou para abraçar o amigo.
- Mercant! Finalmente alguém conhecido!
Mas foi empurrado por um dos guarda-costas.
- Quem são vocês? – indagou Mercant, olhando para nós como se fôssemos vermes.
- Sou Perry Rhodan!
- Mentira! Rhodan morreu na Lua, anos atrás.
Olhamos um para o outro, sem entender.
- Não, eu não morri. Estou aqui. Eu e Bell...
- Os dois morreram na Lua, a primeira missão tripulada ao satélite. Isso foi pouco antes da guerra.
- Houve uma guerra atômica?
- Claro que sim! Estados Unidos e União Soviética resolveram suas diferenças jogando bombas uns nos outros. Quando as nossas primeiras bombas foram enviadas, a cúpula de Washington resolveu fugir, imaginando que a cidade seria o principal alvo dos mísseis soviéticos. O avião deles foi bombardeado e todos morreram. Eu, no entanto, tive uma intuição. Decidi ficar. Agora percebo que foi uma decisão acertada. Eles praticamente ignoraram a cidade. Acabada a guerra, eu era um das poucas pessoas que ainda tinha armas, comida e todo o resto. Tornei-me o rei desta cidade em ruínas.... Mas por que estou contando tudo isso a vocês? Todos sabem disso...Quero saber de vocês! Quem são? O que estão fazendo com essas roupas?
Ninguém respondeu. Rhodan parecia absorto em seus pensamentos.
- Eu perguntei quem são vocês! – gritou Mercant.
Rhodan levantou a cabeça, altivo, e respondeu:
- Já disse: Sou Perry Rhodan!
Mercant parecia possesso. As privações e o poder absoluto haviam mudado aquele homem.
- São loucos! Completamente loucos! Eu poderia matá-los agora, mas quero saber quem são e o que estão fazendo aqui. Tirem os uniformes deles!
Alguns homens avançaram contra nós e tiraram nossos trajes espaciais. Ao contrário do que eu esperava, nós não sufocamos. A atmosfera era respirável.
- Leve-os para o calabouço. Talvez as baratas e ratos façam com que eles saibam quem manda aqui.
Fomos empurrados na direção de uma portinhola. As pessoas abriam caminho para nossa passagem. Em seus rostos eu podia ver o medo e pena pelo que aconteceria com nós. Finalmente nos empurraram para dentro de uma sala escura e úmida. Logo comecei a sentir algo andando por meu corpo. Eram baratas. Ratos guinchavam de felicidade, antecipando o prazer da refeição.

PARTE III

Como seria?
Como seria o mundo?
... Se um pintor frustado não se tornasse o líder do partido nazista? Se ele não tivesse chegado ao poder e espalhado a sombra do terror sobre toda a Europa?
Como seria?
...Se um homem chamado Colombo não tivesse imaginado que a Terra era redonda? Se ele não tivesse convencido a Rainha de Castela a financiar sua aventura?
... Se o filho de um carpinteiro não começasse a falar a respeito de suas idéias? Se ele não tivesse contaminado milhões e milhões de pessoas com a sua utopia de um mundo melhor?
Como seria?
Como seria o mundo se Perry Rhodan não tivesse voltado da Lua? Se ele tivesse morrido por lá, incapaz de se comunicar com seu planeta natal?
Certamente o mundo seria diferente se qualquer uma dessas coisas tivesse acontecido. Certos eventos são tão improváveis que acabam provocando grandes modificações na história da humanidade.
Era isso que estávamos discutindo naquele momento, naquela prisão fétida e repleta de ratos... como a história poderia ser diferente se a probabilidade dos eventos fosse alterada.
- Aquele monumento é uma espécie de portal das probabilidades. – disse Rhodan. Ele é capaz de identificar pequenos eventos que, modificados, mudam toda a história.
- É isso que deve Ter acontecido com o povo daquele planeta em ruínas. – ponderou Bell. O portal modificou a probabilidade dos eventos...
- ... e acabou com toda a vida no planeta. – conclui.
Bell começou a andar de um lado para o outro no pequeno espaço.
- Por quê? Qual a função dessa máquina, se é que é uma máquina... E como as pessoas do planeta a construíram e acabaram sendo mortos por ela?
- Você não tem nada na cabeça mesmo, hein gorducho? – chilreou Gucky. O portal foi achado. Ele é muito mais velho que a civilização das ruínas. Deve ter sido um achado arqueológico. Por isso o colocaram em um museu...
Bell ficou vermelho.
- Ah é, espertinho? Se é tão inteligente assim, por que não faz alguma coisa? Por que não dá alguns saltos até a nave e pede ajuda?
Rhodan balançou a cabeça.
- Você não entende, Bell? A nave não existe mais. Os humanos nunca conquistaram o espaço. Todo mundo que conhecemos não existe mais.
Bell sentou-se, abalado com a revelação.
- O que vamos fazer? – balbuciou.
- Antes de mais nada precisamos sair daqui. – disse Rhodan. Precisamos voltar ao Museu e tentar mudar as coisas. Gucky?
- O senhor é que manda, chefinho!
De repente algo estranho aconteceu. Os parafusos que prendiam as dobradiças das portas começaram a se mover, como se fossem manipulados por uma chave invisível. Depois de algum tempo todos estavam no chão e a porta desabou com um grande estrondo.
A multidão assustada olhou para nós quando assomamos à porta.
Um dos guardas se aproximou com uma metralhadora, mas a arma ganhou vida e resolveu fazer um passeio no teto do abrigo. O homem, como não quisesse soltá-la, acabou sendo levado junto e ficou lá, dependurado, as pernas balançando no ar.
- Quem mais quer voar? – perguntou Gucky, mostrando os dentes.
A multidão abriu espaço para nós.
Gucky foi na frente, marchando como um soldadinho de chumbo. Saímos do alojamento e atravessamos a rua. Em pouco tempo estávamos na frente do Museu.
- E agora, chefe? – indagou Gucky.
- Vamos entrar e examinar o portal. Deve haver algum mecanismo.
Rhodan deu dois passou e abriu a porta. Novamente pudemos ver o interior do edifício, totalmente conservado.
Segui Rhodan e o ajudei examinar o portal. Mas foi em vão. Não havia nada. Nenhum botão. Nenhum mecanismo.
Bell coçou a cabeça.
- Como faziam para esta coisa funcionar?
- Talvez controle remoto. – sugeri.
Rhodan balançou negativamente a cabeça.
- Nada disso. Deve haver algum mecanismo automático que liga essa coisa quando há gente por perto.
- Como o portal descobre que há pessoas por perto?
- Pensamento. – respondeu Rhodan. É assim que ele descobre os eventos que, uma vez alterados, podem mudar tudo.
Foi quando compreendi o que o administrador queria dizer.
- Se ele consegue captar pensamento, talvez consiga se comunicar dessa forma.
- Exatamente. Acho que temos serviço para você, Marshall. E para você também, Gucky.
Eu e o rato-castor nos aproximamos do portal e tentamos manter contato. Por instantes não senti nada. Era como tentar se comunicar com o chão, ou com o ar. Mas de repente toquei em algo. De um instante a outro, minha mente foi dominada por pensamentos estranhos. Vi o nascimento do universo sendo alterado. Vi uma civilização morrer por causa de um espelho. Vi um escritor cego ditando uma história. Vi seres diáfonos, em dedicada diversão. Vi naves espaciais explodindo no meio do vácuo. Novamente seres diáfonos carregando uma coisa. Uma lesma provocando uma guerra. Eu podia ver a coisa que eles carregavam. Era retangular e grande. Um parafuso se soltando de um avião e provocando sua queda. Os seres diáfonos carregavam o portal!
Acordei com uma insuportável dor de cabeça. Mas havia descoberto o significado do portal.
- É um brinquedo! – gritei. Um brinquedo de crianças! Os seres que a construíram a usavam para brincar com a realidade.
- Nós sabemos. – disse Rhodan. Gucky está em contato com a coisa.
Eu me levantei e, segurando a cabeça, vi o rato-castor. Ele parecia em transe e balbuciava palavras num tom de voz grave. O portal estava falando através de Gucky! Rhodan conversava com ele.
- Quem é você?
- Meus criadores não me deram um nome, apenas uma função.
- Qual é a sua função?
- Realizar brincadeiras com a realidade para ensinar às crianças a respeito da dependência sensível das condições iniciais dar-lhes responsabilidade. As crianças devem entender o caos, a entropia, os sistemas dinâmicos antes de aprender coisas realmente importantes.
- O que são as coisas realmente importantes?
- Não fui programado para ensinar sobre elas.
Rhodan coçou o queixo pensativo.
- O que são os sistemas dinâmicos?
- São sistemas que podem ser completamente modificados por pequenas alterações. Quase todo o universo é composto de sistemas dinâmicos: a conformação dos cinturões de asteróides, as montanhas do vale Iniii. Até mesmo um prato de refeição de nerons vivos é um sistema dinâmico. As crianças devem saber disso. Para isso eu existo.
- Você sabe que mudou toda a nossa realidade?
- Sim. Havia várias possibilidades. Uma delas era composta por um parafuso que, uma vez fora do lugar, provocaria uma guerra. Mas preferi uma que envolvia seres vivos para mostrar que a vida é caótica. É um sistema dinâmico. Um homem foi ao asteróide de seu planeta. Havia algo impedindo-o de voltar para casa. Ele resolveu investigar e achou uma tecnologia que mudaria completamente seu mudo. Se ele tivesse se acovardado, teria morrido ali, no asteróide, e seu mundo se consumiria nas chamas atômicas.
- Sabe quem é esse homem?
- Sim. Esse efeito borboleta chama-se Perry Rhodan.
- Sabe quem sou eu?
O portal pareceu tremer e iluminar-se. Depois de algum tempo respondeu, entre gaguejos.
- Você... é Perry Rhodan.
- Sim, e não estou morto. Sua brincadeira não é lógica, já que a alteração da realidade depende de minha morte. Você ensina a não-lógica às crianças?
- Eu ensino também a lógica paradoxal, mas o seu caso escapa à minha compreensão...
Perry Rhodan olhou para nós.
- Eu estava aqui, perto do portal, quando tudo aconteceu. Não fui afetado pela mudança da realidade.
- As crianças que estiverem brincando não devem ser afetadas.
- Mas a mudança dependia de minha morte. Esse é um erro que a programação desta coisa não pode compreender. Diga uma coisa: por que as crianças não poderiam ser afetadas?
- Isso poderia provocar alterações definitivas na realidade...
- Poderia haver uma realidade em que as coisas fossem completamente diferentes e até mesmo esta coisa deixaria de existir, então não haveria como voltar aos níveis normais de probabilidades dos eventos. É um item de segurança...
O portal voltou a tremer e iluminar-se.
- ... Mas como a alteração passou a ser feita a partir de minha morte, isso o coloca em uma situação insolúvel. Só há uma maneira de corrigir isso e impedir essa falha de segurança: você deve voltar a realidade ao normal.
A máquina voltou a pensar. Por fim disse:
- Está bem.
O portal começou a tremer e a emitir uma estranha luz. Em pouco tempo não pude ver mais nada. Tudo ficou escuro e, aparentemente, desmaiei. Quando acordei as coisas pareciam não ter se modificado. O prédio continuava exatamente como antes. Eu me levantei e percebi que Rhodan e Gucky já estavam em pé. Bell esfregava a cabeça e começava a se levantar.
- Vamos embora. – disse Rhodan.
Eu me surpreendi quando abrimos a porta: lá fora as coisas continuavam como estavam no começo. Nada de Washington. As ruínas eram as do planeta desconhecido.
Nós percorremos os escombros e encontramos a nave. Quando já estávamos decolando, Bell resmungou, enquanto ainda coçava a cabeça:
- Há uma coisa que ainda não entendi...
- O quê? – perguntou Rhodan.
- Se ele mudou a história, fazendo com que tivéssemos morrido, por que não morremos?
- Porque o portal é programado para não afetar as pessoas que o estão usando. Ele aparentemente era usado para mostrar as responsabilidades inerentes ao conhecimento. Eles mostravam para as crianças o que aconteceriam se elas não agissem com responsabilidade, mas não as afetava, para que tivessem oportunidade de consertar o erro cometido. Só que com o tempo, depois que a civilização que o criou foi extinta, ou talvez se mudou para o outro mundo, o portal passou a ser uma verdadeira armadilha. Só pudemos modificar a situação porque as pessoas que mudaram os eventos que ele controlava estavam ali e não foram afetadas...
- Continuo sem entender uma coisa...
- Diga, Bell...
- Como ele pôde nos confundir com crianças?
- Ora, você sempre será uma criança, gorducho... – disse Gucky.
Reginald Bell avançou para ele, pronto para esganá-lo.
- Ei, o que é isso, gorducho? Acho que depois de salvar todos nós, eu mereço algumas cócegas...
Rhodan concordou:
- Se não fosse Gucky, não teríamos como nos comunicar com o portal e acho que você não ia gostar de viver em um mundo em ruínas, governado com mãos de ferro por Alan D. Mercant.
Bell se sentou e começou a coçar a cabeça do rato-castor, não sem antes resmungar:
- Ainda vou ter uma conversa muito séria com Mercant...


FIM

OBS: Todos os direitos sobre o Universo PERRY RHODAN pertencem à VPM emRastatt, Alemanha. Este livro foi escrito por Gian Danton com o objetivo de divulgar a série e conquistar novos leitores.

10/23/2007

OS ANJOS
EPISÓDIO 12 – MEMORIAL DE UM QUASE MORTO

Para Gogol

Manuel não conseguia morrer.
Sua vida era uma tristeza só. A mulher o abandonara chamando-o de idiota. Ele perdera o emprego de anos, pois disseram que ele estava velho demais para trabalhar... mas era novo demais para se aposentar. Ele não tinha amigos e passava os dias e noites sozinho, vivendo de pequenos bicos e odiando-se por assistir a programação idiota da TV.
Mas nada disso importava. Tudo estaria bom e certo se ele, ao menos, pudesse morrer.
Ele não estava doente. Tinha uma gripe aqui e outra ali, mas nada que pudesse matá-lo. Infelizmente.
Assim, se ele pretendia dar fim aos seus dias de sofrimento, teria de agir por conta própria. Não podia esperar que a morte lhe caísse ao colo, assim, de mão beijada. Era necessário agir. Então ele pagou suas dívidas, arrumou a casa, tomando cuidado para que tudo estivesse em seu lugar, abriu a janela e pulou.
Dizem que se morria antes mesmo de alcançar o chão, mas mesmo que isso não fosse verdade, a queda do décimo andar deveria ser o suficiente para terminar o serviço.
Sim, era uma morte certa e garantida. Entretanto, antes que o medo ou a queda o matassem, algo fez com que seu corpo parasse. Depois continuou descendo lentamente, em contraste com a aceleração constante e devastadora de antes.
Seus pés tocaram o solo e Manuel olhou para trás. Havia um homem ali, um salvador. Era um homem alto, vestindo uma espécie de capote de lã, um capuz cobrindo sua cabeça de tal forma que, sob a luz do poste, seu rosto era encoberto por sombras.
- Cuidado, vovô... uma queda dessas poderia matá-lo! – disse o desconhecido e voou, desaparecendo na noite.
Vivo. Manuel estava vivo, apesar de só desejar estar morto. Mal livrou-se de sua primeira tentativa frustrada de suicídio, já pensava na segunda.
Talvez fosse melhor morrer de uma maneira mais privada, no conforto do lar e sem ninguém para atrapalhar.
No dia seguinte, ele comprou fita adesiva plásticos. Assim que a noite caiu e o som dos apartamentos cessou, indicando que a maioria dos moradores já estava dormindo, ele lacrou portas e janelas e ligou o gás.
Os vapores se avolumaram no ar, numa nuvem infecta e venenosa.
Manuel sentou em uma cadeira de balanço na sala e esperou que a morte viesse.
Mas ela não veio. Em seu lugar, o som de uma janela estilhaçada.
Era de novo ele, o homem de capote e capuz. Meio inconsciente, Manuel lembrou de ter visto algo sobre ele na TV. Os repórteres o chamavam de Anjo, mas um anjo era tudo que ele não queria.
Anjo ou quem quer que fosse, abriu as janelas, desligou o gás e ligou para o hospital, chamando uma ambulância.
- Não se preocupe, vovô, eles vão salvá-lo. – disse antes de sair voando pela janela.
Manuel não queria ser salvo. Tudo que queria era morrer em paz. Será que era um desejo tão difícil de ser realizado?
O pobre velho passou dois dias internado e, quando saiu, estava decidido a mudar de tática. Talvez o melhor não fosse premeditar. Talvez a sua situação exigisse uma atitude firme e inesperada.
Assim, na primeira esquina movimentada, ele se jogou na frente dos carros. Achou que tinha morrido, mas só estava voando. Não precisou olhar para cima para saber que estava sendo carregado por um homem de capote e capuz.
- Poxa, vovô, tome cuidado ao atravessar a rua. Só atravesse no sinal fechado verde, ok?
Quando saiu voando, Manuel já tinha desistido da idéia de morrer. Não adiantaria enquanto aquele homem voador estivesse vivo. Manuel não poderia suicidar enquanto ele estivesse vivo. Mas talvez isso tivesse jeito...

9/22/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 11 – UM FANTASMA EM CASA


Marcos e Cristina estavam tomando café quando Seu Antunes chegou. Veio sorridente, apesar das olheiras. Vestia roupas novas e trazia uma sacola da loja Girassol.
- Um presente para minha nora querida. – disse ele, estendendo o pacote para Cristina.
Meio sem jeito, ela tirou de lá uma bela camisola vermelha, de renda. Não era uma peça recatada, mas sensual.
- Seu Antunes, estou grávida, essa camisola...
- Não diga nada. Sua barriga ainda não cresceu tanto assim e quero que você esteja bem bonita para meu filho. – disse Antunes e piscou para Marcos. Agora vocês vão me dar licença, que vou lavar o rosto...
Cristina ficou apreciando a camisola, sob o olhar de censura do marido.
- Por que essa cara? É só um presente! E você é muito certinho... vai me dizer que está com ciúmes de seu próprio pai!
- Não é isso, é uma espécie de intuição...
Nisso Antunes voltou do banheiro.
- Oh, vejo que tem café...
Cristina concordou com um sorriso:
- Acostumei a passar café para o senhor. Não custa nada.
- Você é um anjo, meu amor. – e deu uma bitoca na testa da nora.
- Agora preciso sair para comprar algumas verduras antes de ir ao trabalho...
- Nada disso. Deixe uma lista que eu compro...
Cristina fez menção de mexer na carteira para tirar dinheiro, mas o sogro recusou, indignado:
- O que é isso? Estou aqui, de favor na casa de vocês e não posso fazer umas compras? Pode deixar a lista que, quando voltar, vai estar tudo aqui...

***
Marcos voltou mais cedo que de costume para casa. Talvez por causa do fiasco da noite passada, não estava muito disposto a fazer uma ronda noturna.
Encontrou Cristina no quarto, enxugando-se com uma toalha e passando creme no corpo. Desde que engravidara, aquele ritual repetia-se diariamente.
- Onde está o meu pai?
- Ele saiu, mas fez as compras e deixou tudo arrumado. Até deu uma ajeitada na casa...
Cristina espalhava lentamente o creme pela barriga já um pouco proeminente, como seu acariciasse o seu bebê.
- Não sei. Eu ainda não consigo confiar nele... – começou Marcos.
- Você ainda está muito abalado com tudo que tem acontecido e não consegue ver o bom homem que é seu pai. Vê como ele é solícito? Não há nada que eu peça a ele que ele não faça...
- É justamente isso. Ele é solícito demais... ninguém faz nada de graça.
- Você está ficando amargo. Onde está o homem com quem eu casei, o homem gentil, que acreditava que todas as pessoas são boas?
Cristina estava de costas para ele e espalhava o creme pelas nádegas. Marcos sentiu um cheiro estranho. Cebola.
- Cristina, você comeu cebola hoje? Salada ou algo assim?
- Não, hoje eu não comi nada com cebola. Não que eu saiba. Por quê?
Marcos respirou fundo. Cebola. E suor. Não era seu próprio suor. Não podia ser de Cristina, que acabara de tomar banho. Ela exalava uma mistura de sabonete, água, xampu e creme. Havia também um outro cheiro... cafeína.
- O que foi? – indagou Cristina.
Marcos não respondeu. Estava parado, olhando à volta, aguçando os ouvidos como um cachorro caçador.
- O que foi? – tornou Cristina.
De repente ele captou um som, como se sintonizasse uma estação ao girar o dial.
Uma respiração.
Marcos girou, avançando na direção do nada e agarrando o ar. O nada respondeu com um som surdo e engasgado.
Por instinto, Cristina cobriu-se com a toalha.
- O que foi? – repetiu ela, apreensiva.
Marcos levantou a mão esquerda e a levou para junto da outra. Seus dedos crisparam-se sobre o vazio e uma veia pulou em seu pescoço.
Usando toda a sua força, ele empurrou as mãos na direção da parede e soltou-as um pouco antes do impacto. Houve um estrondo. Um quadro com uma foto estilhaçou-se e caiu no chão.
Cristina gritou.
- Marcos, o que...
Mas não continuou. Algo começou a surgir entre a parede e o ar. Uma névoa, que foi tomando forma até se transformar em uma pessoa. Antunes.

***

Da mesma forma como surgiu, Antunes foi desaparecendo lentamente, tomado por uma névoa cada vez mais tênue. Em seu lugar ficou apenas o ar.
Cristina percebeu a movimentação de algo que não conseguia ver e seu marido se deslocando rápido para o lado. Algo bateu na porta do banheiro. Marcos avançou para o nada, agarrou algo e o jogou para a sala. Antes de chegar ao chão, o nada havia se transformado novamente em Antunes.
Caído no chão da sala, o sangue escorria de seu nariz.
Marcos agarrou-o pelo colarinho.
- Fale!
Antunes grunhiu.
- Diga que é tudo mentira o que nos contou. Diga você que você abandonou a mim e à minha mãe!
Antunes tentou reagir, mas não conseguia.
- Está bem. É tudo mentira. Eu nunca procurei por você. Eu os abandonei, mas tinha vocês sempre por perto, pois poderia ser conveniente ter um filho...
- Foi assim que me descobriu?
- Sim. Eu passava as noites nas lojas de departamento, mas precisava de um local para passar o dia.
Antunes sorriu, sarcástico.
- Cheguei a entrar aqui invisível, para observar se o local era seguro.
- Você... – disse Cristina, mas levou a mão à boca, antes de terminar, como se fosse uma verdade terrível demais para ser dita.
- Você tem uma mulher gostosa!
Marcos calou-o com um tapa.
- Deixe-me adivinhar. Você passava as noites nas lojas de departamento, roubando. Como estava invisível, os vigias não viam ninguém. Você retirava as etiquetas de segurança e no dia seguinte saía pela porta da frente, certo de que os censores não iriam detectá-lo.
- Você é muito esperto. – zombou Antunes. Descobriu isso sozinho?
- Bem, eu tenho más notícias para você. Eu agora conheço seu cheiro e posso senti-lo mesmo à distância. Nunca mais chegue perto de minha casa e nunca mais faça seus roubos, ou entrego você para a polícia... embalado para presente! Agora saia daqui!
- Eu... não posso sair nu!
Cristina desapareceu no corredor e voltou com as roupas de Antunes. Jogou-as nele e depois cuspiu em sua cara.
Antunes vestiu a roupa e saiu. Seu cheiro fedia a ódio e vingança.

8/06/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 10 – O FANTASMA DA LOJA DE CONVENIÊNCIA


Marcos e Cristina estavam jantando e ouvindo música quando ouvir bater à porta.
Marcos se levantou ainda mastigando um pedaço de ovo frito com farinha e abriu a porta. Havia um homem lá. Era calvo, os cabelos grisalhos. Devia ter uns 50 anos ou mais – talvez mais. Usava uma camisa de manga curta, os botões pressionados, ameaçando estourar sob a pressão da barriga proeminente.
- Quem é, querido? – perguntou Cristina, sem se levantar da mesa.
Marcos ia responder “Não sei”, mas ficou em silêncio, esperando que o estranho se manifestasse.
O homem calvo abriu os braços, como se esperasse um abraço.
- E então? Não reconhece mais o seu pai?
Pai? A palavra ecoou na mente de Marcos. Não se lembrava de um pai. Suas lembranças mais antigas eram dele e sua mãe, juntos e sozinhos. Pai? Todos tinham um pai, claro, ele sabia disso. Sua mãe lhe dera uma explicação qualquer, mas quando cresceu o bastante para pensar no assunto, Marcos percebeu que ele e sua mãe haviam sido abandonados. Pai? Suzana sempre fora mãe e pai para ele. E, de certa forma, ele criara em si mesmo uma parte de sua personalidade que exercia a função de pai.
- Pai?
- Eu te procurei durante anos e finalmente te encontrei, meu filho!
O homem se aproximou e abraço-o. Marcos recuou. Era como ser abraçado por uma lesma. Ou por um sapo.
- Meu filho, que bom poder te abraçar. Te procurei por tanto tempo...
Lá dentro vinha do rádio a voz de Raul Seixas:
“Eu é que não me sento num trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar,
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais no cume calmo do meu olho,
que vê, assenta a sombra sonora de um disco voador”.
Cristina aproximou-se e olhou intrigada para a cena: um homem de meia idade, mas ainda bem conservado, abraçando seu marido, que exibia uma expressão mista de repulsa e timidez.
- Querido, quem é? – perguntou ela.
O homem calvo se aproximou a pegou em sua mão.
- Você deve ser a esposa dele. Puxa, é um prazer imenso. Olhe, você está grávida! Meu nome é Antunes, qual é o seu?
- Cristina, mas...
- Que emoção! Descobrir o filho e saber que vou ser avô...
Marcos estava atônito, sem saber o que fazer. Cristina abriu um sorriso:
- O senhor aceita um copo d’água?
- Um cafezinho, se não for incômodo...
- Se o senhor não se importar de tomar nescafé...
- Imagine! Não sou de cerimônias. Bebo qualquer coisa que tenha cafeína...
- Então sente-se que vou buscar.
Marcos reparou que ele tinha olheiras. “Ele toma café para ficar acordado”. O pensamento pulou de sua cabeça como um daqueles palhaços que saltam de caixas-surpresa.
- Então você... é meu pai... – disse, sentando-se à frente do homem.
- Não sei que história a sua mãe lhe contou. Ela deve ter dito que eu abandonei vocês, mas a verdade é que ela fugiu de mim e levou você junto. Ela sabia que a juíza ia me conceder a posse e não queria se arriscar.
Marcos vasculhou sua mente em busca de fatos que comprovassem isso, mas não encontrou. Aparentemente, ele e sua mãe moraram anos na mesma casa.
- Mas tudo é passado. Você não sabe o quanto estou feliz por encontrar você e sua linda mulher.
Antunes disse isso e sorriu para Cristina, que se aproximava com uma xícara de café fumegante.

* *
O pai de Marcos passou a morar com eles. Ou talvez essa não fosse a palavra mais adequada. A verdade é que ele passava todas as noites na rua. Dizia ser um boêmio, mas devia beber pouco, pois não voltava bêbado. O único sinal de que passara a noite em claro eram as enormes olheiras. E tomava café, muito café, por todo o dia. Dormia uma ou duas horas e estava bom. Precisava de pouco sono, desde que tomasse café.
Marcos também passava boa parte das noites fora. Estava interessado nos roubos às lojas de departamentos. Todas as noites, sobrevoava as lojas, os ouvidos aguçados, à procura de qualquer pista.
Certa noite pensou ouvir algo na loja Girassol. Pousou no teto e procurou uma entrada. Felizmente, havia uma clarabóia. Marcos entrou por ela.
Seus ouvidos captaram sons de passos no departamento de móveis e ele voou para lá a tempo de ver alguém sumindo na direção dos cabides de roupas. Marcos achou que seus sentidos o estavam enganando: o que quer que estava perseguindo não parecia ter braços ou cabeça. Era como se uma camisa vermelha e uma calça jeans tivessem adquirido vida própria e resolvido dar um passeio pela loja.
Era não só estranho, mas irreal e Marcos se perguntou se o fato de seus sentidos serem mais aguçados não o tornaram vítima de uma ilusão de ótica.
Mas e os passos? Ele continuava ouvir passos. Atordoado, Marcos avançou pelo departamento de roupas femininas e encontrou uma camisa vermelha, uma calça jeans e uma cueca jogados ao chão. Era como se as roupas tivessem desistido de seu passeio noturno. Mas os passos... os passos continuavam... para baixo.
Marcos foi até a escada rolante e flutuou até o andar de baixo. Roupas infantis. Ele passava pela seção de saias e vestidos quando foi atingido na nuca por algo. Seus pés despencaram no ar e sua cabeça bateu no chão.
- Quem está aí? Eu estou armado e vou atirar! – gritaram, ao longe.
É o vigia, pensou Marcos em meio à vertigem. Cambaleando, ele se elevou no ar e alcançou o andar de cima. Abaixo dele, o vigia avançava, barulhento como uma manada de elefantes. Não se parecia em nada com os passos sutis que ouvira anteriormente.
Apesar de estar flutuando, Marcos bateu o pé na quina de uma cômoda e desabou. O instinto o fez flutuar a poucos centímetros do solo, evitando um novo hematoma. Mas os sentidos continuavam estranhos e misturavam-se a uma perturbadora ânsia de vômito.
- Quem está aí? – gritou o vigia, já mais próximo.
Onde estava a saída? As imagens turvas misturavam-se com as lembranças das roupas andarilhas. Em seu delírio, Marcos imaginou que estava sendo perseguido por um batalhão de roupas sem corpo. Macacões rosas e botinhas ortopédicas misturavam-se a conjuntos de praia e ternos sociais, subindo pelas escadas, tentando alcançá-lo.
Marcos sacudiu a cabeça, tentando afastar os fantasmas e concentrar-se na saída.
- Estou avisando! Entregue-se ou vou atirar!
Marcos subiu pela clarabóia quando o primeiro tiro grunhiu abaixo dele. Pensou em ficar alguns momentos no telhado, recuperando-se, mas achou arriscado e voou sem rumo, rezando para não ser visto. Finalmente pousou no telhado de um prédio e ficou lá por quase meia-hora.

5/28/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 9 – O HOMEM QUE SABIA DEMAIS

Érico era uma dessas pessoas que chamavam atenção por sua total ausência de predicados. Pequeno e magro, não havia nada em sua aparência que pudesse parecer um atrativo para as mulheres. Entretanto, ele se dava bem com elas. Tinha uma lábia, um carisma especial que parecia enfeitiçá-las.
Naquela noite, por exemplo, ele estava acompanhado por dois belos exemplares do sexo feminino: uma garota morena de cabelos anelados e longos, seios grandes e lábios carnudos. A outra era igualmente bonita. Tinha o cabelo liso, pintado de ruivo, cortado à Chanel. A pele era branca, muito branca e macia e pequenas sardas se avolumavam em seu peito. O trio chamava atenção pelo inusitado do contraste: ele baixo e inexpressivo, elas altas e exuberantes.
Ficaram lá por um bom tempo e já era alta madrugada quando resolveram ir embora.
Havia dois homens esperando por eles do lado de fora. Ambos musculosos, os trícepes tatuados em motivos tribais. O mais baixo deles assoviou para as meninas:
- Ei, gostosas!
Como nem elas, nem seu companheiro parecessem dar atenção, ele repetiu a frase, numa entonação mais agressiva.
Érico parou e olhou-o.
- O que foi, rapaz? Não gostou? Talvez queira brigar comigo...
- Não vejo motivo para brigar com você, mas aconselho-o a ser mais educado com as mulheres. Já conquistou alguma assim?
- Você está me chamando de otário?
Érico olhou para cima, como que clamando por ajuda.
- Eu não o chamei de nada, apenas dei uma sugestão. Minhas sugestões são valiosas. Se eu fosse você, aproveitaria.
- Tu é muito engraçadinho! Vou quebrar as tuas fuças. – ameaçou o outro.
- Você quer provar que é macho batendo em alguém muito mais fraco que você? É isso? Talvez as meninas gostem de ver o quanto você é macho batendo em um cara como eu...
- Se tu é macho, vem brigar comigo!
O rapaz dava pequenos pulinhos ameaçadores, como se estivesse num ringue e desferia pequenos golpes no ar. Alguns chegavam muito próximos de Érico, que, no entanto, permanecia impassível.
- Não acho que minha masculinidade possa ser testada em uma contenda desse tipo. Sinto decepcioná-lo. Meninas, vamos embora.
Os três se viraram e já iam se afastando quando o outro se adiantou e colocou-se à frente deles.
- Você não vai sair assim, depois de ter tirado sarro de mim.
- Ei, Bad Boy, deixa o rapaz em paz. Ele não quer briga. – interveio o rapaz mais alto e forte.
- Não, Panturrilha. Hoje ele só sai daqui numa ambulância!
- Sim, talvez você resolva me bater. Mas talvez, se você fizer isso, e é apenas uma conjectura, talvez amanhã você esteja morto.
- O que tu quer dizer com isso?
- Quero dizer que talvez eu saiba onde você compra seu açaí... talvez eu saiba onde você faz musculação...
- E daí?
- E daí que existem venenos incolores e inodoros.
- Inodoros? Que merda é essa?
- Quer dizer que você só vai sentir o gosto quando estiver morto...
- Tu tá me ameaçando? Eu vou te matar e vamos ver o que você vai fazer no caixão.
- Sim, talvez eu, estando morto, não possa fazer nada. Mas talvez eu já tenha deixado tudo pronto para que você me faça companhia no cemitério. Você jamais teria paz, sabendo que a qualquer momento algo poderia lhe acontecer. Poderia ser alguém que derrubasse você na frente de um carro. Ou poderia ser, vamos ver... talvez um choque elétrico quando você estivesse tomando banho. Eu gostaria disso. Você conseguiria dormir com essa dúvida? Conseguiria, Júlio?
- Ei, como você sabe meu nome?
- Bad Boy, vamos embora. – insistiu o outro.
- Como você sabe meu nome? – o rapaz insistiu. Havia já alguma apreensão em sua fala.
- Talvez eu só tenha chutado. Ou talvez eu saiba não só o seu nome, mas a hora em que você sai de casa, onde você estuda, o que você gosta de comer. Talvez eu até saiba sobre vocês dois...
Bad Boy e Panturrilha se entreolharam, nervosos.
- Quem te disse isso, quem mais sabe?
- Talvez a mesma pessoa que me disse que seu nome é Júlio Augusto Pereira.
- Talvez a mesma pessoa que me disse que seu amigo se chama Rodrigo. Talvez a mesma pessoa que me disse onde vocês costumam se encontrar...
- Eu vou quebrar as tuas fuças! – berrou Bad Boy.
- Espera, como ele sabe dessas coisas? Ninguém mais sabe. Cara, eu não estou gostando disso, é melhor a gente ir embora...
Érico olhava e ria com o canto dos lábios. Apesar de menor e muito mais magro, ele parecia olhar para os dois de cima para baixo.
- Talvez eu saiba exatamente o que fazem e como seria a melhor forma de matá-los. Rodrigo, talvez você se lembre de um dia, você devia ter uns 6 anos, acho. Creio que havia uma geladeira enferrujada...
- Pára! Bad Boy, vamos embora, pelo amor de Deus!
- Vamos, vão em frente, me batam. Eu adoraria matá-los. Veneno, talvez. Ou talvez uma doença infecciosa. Oh, sim, isso seria melhor. Bastaria infectar um dos dois... muito mais prático. Tenho más notícias para você, meu amigo: eu sei o creme dental que usam, sei a marca de seu desodorante, sei que você sempre gargareja antisséptico bucal antes de dormir e que seu amiguinho aí lava as mãos com álcool ante de comer. Sei que você está fazendo um tratamento de canal em um molar, sei que você tem hora marcada com o dentista amanhã à tarde. Ei, vocês estão pálidos! Vamos, sigam em frente. Mostrem o quanto são machos!
Os dois pareciam estar tremendo. Foram reveladas coisas sobre eles que poucas pessoas sabiam. Panturrilha deu dois passos para trás e puxou o amigo, que não ofereceu resistência. Logo os dois estavam correndo como se tivessem visto lobos.
- Bem, meninas, vejam dois belos exemplos do sexo masculino...Agora, venha comigo. A noite ainda é uma criança...

5/07/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 8 – ONDINA


Eu a peguei nos braços e a levei para a área portuária. Enquanto voávamos, seus cabelos ondulavam como maresia.
Ficamos sentados na beira do rio, observando a água bater contra o muro de sustentação.
- Como começou? – perguntei, depois de um longo e constrangedor silêncio.
Ela me olhou com olhos marejados.
- Eu me casei muito jovem. Tinha 17 anos. Estava grávida e era a única saída que tinha. No começo, meu marido era carinhoso comigo, mas com o tempo algo mudou. Ele voltava do trabalho cada vez mais tarde e cada vez mais cheirando a álcool. Um dia reclamei... e ele me bateu.
Lágrimas inundaram seu rosto. Ela enxugou as lágrimas e continuou.
- Eu perdi a criança. Depois disso, o nosso relacionamento nunca mais foi o mesmo. Eu tinha asco dele e o culpava pela morte de minha filha. Um dia ele tentou me violentar. Eu o empurrei e ele bateu a cabeça na parede. Nunca o vi tão fora de si. Se eu fechar os olhos, consigo visualiza-lo, seus olhos vermelhos, posso sentir seu bafo de cachaça, sua respiração ofegante...lembro de sua voz rouca, dizendo que eu iria pagar... ele foi até a cozinha e eu ouvi barulho de vidro. Quando voltou, trazia na mão uma garrafa partida. Ele ia me matar, cortar minha garganta com vidro e ficaria ao meu lado, me olhando e vendo a vida se esvair do meu corpo...
Novo silêncio. Ela engolia em seco, agora segurando as lágrimas. Olhou algum tempo para as águas antes de começar a falar. Seu olhar agora era determinado como a preamar.
- Por alguma razão eu achei que deveria morrer cantando. Talvez fosse uma demonstração de força, ou um grito de desespero, mas o fato é que eu cantei. Cantei com todo o meu coração. Algo estranho aconteceu, então. Sua mão parou a meio caminho de minha garganta. Ficou naquela posição por horas, até a polícia invadir o apartamento. Eles me encontraram encolhida em um canto, murmurando melodias. Meu marido não conseguia nem mesmo falar. Foi levado para um hospício e, se Deus quiser, vai morrer lá.
- E com você? Como você se saiu?
- Foram os piores e os melhores anos de minha vida. Eu estava sozinha no mundo, sem marido ou família, pois não queria voltar para meus pais. No começo foi bem difícil para uma moça inexperiente como eu arranjar emprego, mas consegui e voltei para a escola. Com muito esforço, passei no vestibular e arranjei um emprego melhor. Quando achei que minha vida estava encaminhada, comecei a pensar nas outras mulheres que sofriam como eu. Sabe, quando tive o aborto, todos no hospital, médicos e enfermeiros, sabiam que eu havia sido espancada, mas ninguém fez nada. Eu queria fazer a diferença, queria fazer alguma coisa por essas mulheres esquecidas e sozinhas...
- Então começou a fazer a ronda noturna?
- Sim.
Continuamos conversando por um bom tempo e eu lhe contei sobre minha vida. Depois me ofereci para leva-la para casa, mas ela recusou. Queria aproveitar a caminhada até casa para fazer uma ronda.
Cristina estava dormindo quando cheguei em casa. Eu beijei sua barriga e deitei ao seu lado, mas não consegui dormir. Sonhei com a mulher de cabelos dourados.

4/30/2006



OS ANJOS
EPISÓDIO 7 – A MULHER DE CABELOS DOURADOS

“Tem gente que canta procurando Deus
Tem gente que recebe Deus quando canta”
Cazuza

Eu estava perseguindo três ladrões. Eles haviam surrupiado a bolsa de uma senhora idosa e, como ela resistia, a teriam espancado até a morte se eu não aparecesse. Com o tempo descobri que ver alguém descer do céu, em meio às sombras, pode ser uma visão aterradora o bastante para fazer correr uma trinca de criminosos e foi isso que aconteceu naquela noite.
O ato de voar era, inevitavelmente, ligado a algo sobrenatural e, se para alguns eu era um anjo, para outros eu, vestindo um capote, o rosto encoberto por um capuz, parecia-me mais com um demônio.
Os assaltante correram desajeitadamente, ao mesmo tempo que jogavam para trás a bolsa, como se ela queimasse em suas mãos.
Eu acompanhava dos céus sua fuga inútil, embora estivesse preocupado com a possibilidade de não conseguir pegar os três. Quando eles entraram em um beco, eu me senti tranqüilizado, pois agora eles dificilmente me escapariam. Além disso, naquele local estreito, os três não poderiam me atacar ao mesmo tempo. Era o lugar ideal para abordá-los, mas quando me aproximei, vi algo fantástico: eles estavam parados, como que congelados. Do outro lado do beco, havia uma mulher cantando.
Tinha longos cabelos cacheados de cor dourada e eles eram como conchas deslizando num mar de ondas. Os olhos eram grandes, profundos, ressaltados por sobrancelhas grossas. Os lábios, vermelhos e grandes, moviam-se e deles saiam sons que eram como o bater de ondas nas rochas ou o murmúrio instável do rio enchendo e vazando. Sua voz tinha o gosto reconfortante da água de poço e ao mesmo tempo era arenosa como a água do mar e tinha o aroma suave do orvalho sobre as plantas em uma manhã na floresta. Suas canções falavam de barcos perdidos, de mães chorosas, da lágrima de uma menina, da saliva de duas mulheres se beijando.
De repente, percebi que estava sendo hipnotizado e despertei, assustado. Eu quase despencara de cima do prédio. Olhei para baixo e vi os três homens chorando como se estivessem em seus próprios enterros. Eles ficariam ali por horas ou dias, como carpideiras de si mesmos.
Virei o rosto para o outro lado e percebi que a mulher havia desaparecido. Contornei o prédio e sobrevoei a rua, procurando a moça de cabelos cacheados, mas ela havia desaparecido.

* * *
No dia seguinte, após o trabalho, fui à biblioteca. Pedi os jornais do último mês, todos os três: a Gazeta Popular, A Folha de Santa e Helena e O Tribuno.
Examinei atentamente as notícias, concentrando-me nas páginas policiais. Havia alguma coisa sobre O Anjo e seu sorri ao ler isso, entre envergonhado e orgulhoso.
Fora isso, havia uma matéria sobre como haviam aumentado os roubos nas lojas de departamentos. Nem mesmo o sistema de segurança estava conseguindo diminuir os furtos, pois o bandido, misteriosamente, retirava as etiquetas das roupas e objetos e simplesmente saía com eles. Havia uma declaração de um gerente segundo o qual era impossível retirar as etiquetas sem o equipamento específico, que só existia nos caixas. Era como se os roubos estivessem sendo feitos por um fantasma.
Mas não era isso que eu estava procurando. Depois de muita procura, achei uma matéria sobre dois ladrões que haviam dormido enquanto tentavam violentar uma vítima.
Era essa a pista!
Encontrei mais três matérias sobre ladrões que haviam sido presos em atitudes estranhas. Um deles estava rindo, o outro catatônico, o outro chorava. Um marido que espancava a esposa foi encontrado tremendo de medo.
Eu a ouvira e sabia que ela podia provocar reações assim em qualquer um que a ouvisse cantar. Não havia relatos da mulher porque todos estavam perturbados demais para identificar quem quer que fosse, mas uma mulher que morava perto de onde acontecera um dos fatos declarou que ouvira uma estranha canção.
Havia algo em comum em todos os casos: as vítimas eram sempre mulheres!

* * *
As informações colhidas na biblioteca foram bastante úteis. A partir daquele dia, em minhas rondas noturnas, passei a dar mais atenção para crimes contra mulheres.
Foi no terceiro dia que a encontrei.
Uma mulher saíra gritando de um cortiço e um homem corria atrás dela, uma faca na mão direita. A mulher caiu e ia ser esfaqueada quando a cantora de cabelos dourados apareceu. Eu estava alto demais para ouvir detalhes da música que cantava, mas pude ver quando o homem largou a faca, levou a mão ao rosto, como se estivesse repleto de vergonha e caiu no chão, tremendo.
A sereia afastou-se, dobrando uma esquina e me encontrou. Ela assustou-se e abriu a boca para iniciar uma canção.
- Não, por favor. – pedi. Não sou inimigo.
Ela não cantou, mas olhou desconfiada para mim, a boca entreaberta como quem segura um revólver destravado.
- Sou como você. – disse Marcos. Sou um anjo.