5/07/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 8 – ONDINA


Eu a peguei nos braços e a levei para a área portuária. Enquanto voávamos, seus cabelos ondulavam como maresia.
Ficamos sentados na beira do rio, observando a água bater contra o muro de sustentação.
- Como começou? – perguntei, depois de um longo e constrangedor silêncio.
Ela me olhou com olhos marejados.
- Eu me casei muito jovem. Tinha 17 anos. Estava grávida e era a única saída que tinha. No começo, meu marido era carinhoso comigo, mas com o tempo algo mudou. Ele voltava do trabalho cada vez mais tarde e cada vez mais cheirando a álcool. Um dia reclamei... e ele me bateu.
Lágrimas inundaram seu rosto. Ela enxugou as lágrimas e continuou.
- Eu perdi a criança. Depois disso, o nosso relacionamento nunca mais foi o mesmo. Eu tinha asco dele e o culpava pela morte de minha filha. Um dia ele tentou me violentar. Eu o empurrei e ele bateu a cabeça na parede. Nunca o vi tão fora de si. Se eu fechar os olhos, consigo visualiza-lo, seus olhos vermelhos, posso sentir seu bafo de cachaça, sua respiração ofegante...lembro de sua voz rouca, dizendo que eu iria pagar... ele foi até a cozinha e eu ouvi barulho de vidro. Quando voltou, trazia na mão uma garrafa partida. Ele ia me matar, cortar minha garganta com vidro e ficaria ao meu lado, me olhando e vendo a vida se esvair do meu corpo...
Novo silêncio. Ela engolia em seco, agora segurando as lágrimas. Olhou algum tempo para as águas antes de começar a falar. Seu olhar agora era determinado como a preamar.
- Por alguma razão eu achei que deveria morrer cantando. Talvez fosse uma demonstração de força, ou um grito de desespero, mas o fato é que eu cantei. Cantei com todo o meu coração. Algo estranho aconteceu, então. Sua mão parou a meio caminho de minha garganta. Ficou naquela posição por horas, até a polícia invadir o apartamento. Eles me encontraram encolhida em um canto, murmurando melodias. Meu marido não conseguia nem mesmo falar. Foi levado para um hospício e, se Deus quiser, vai morrer lá.
- E com você? Como você se saiu?
- Foram os piores e os melhores anos de minha vida. Eu estava sozinha no mundo, sem marido ou família, pois não queria voltar para meus pais. No começo foi bem difícil para uma moça inexperiente como eu arranjar emprego, mas consegui e voltei para a escola. Com muito esforço, passei no vestibular e arranjei um emprego melhor. Quando achei que minha vida estava encaminhada, comecei a pensar nas outras mulheres que sofriam como eu. Sabe, quando tive o aborto, todos no hospital, médicos e enfermeiros, sabiam que eu havia sido espancada, mas ninguém fez nada. Eu queria fazer a diferença, queria fazer alguma coisa por essas mulheres esquecidas e sozinhas...
- Então começou a fazer a ronda noturna?
- Sim.
Continuamos conversando por um bom tempo e eu lhe contei sobre minha vida. Depois me ofereci para leva-la para casa, mas ela recusou. Queria aproveitar a caminhada até casa para fazer uma ronda.
Cristina estava dormindo quando cheguei em casa. Eu beijei sua barriga e deitei ao seu lado, mas não consegui dormir. Sonhei com a mulher de cabelos dourados.

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