4/02/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 5 – DESAPEGO

No dia seguinte, Marcos e Cristina não foram trabalhar. Dormiram até tarde e conversaram pouco. Era ainda difícil lidar com o que tinha acontecido: o seqüestro de Cristina, o homem de preto. Marcos quase o matara. Pela primeira vez em sua vida, ele quase tirara a vida de uma pessoa e esperava jamais precisar voltar a fazer isso.
Ele foi o primeiro a acordar e se sentiu feliz por ter Cristina ao seu lado. Só damos valor ao que perdemos e ele quase perdera a esposa. Como forma de demonstrar o seu carinho, ele a beijou na testa. Cristina acordou desesperada e afastou-o com um empurrão. Então percebeu que era ele e o abraçou, chorando. Seus olhos ainda estavam vermelhos quando tomaram café e ela não disse uma única palavra. Na verdade, evitava o olhar do marido.
Na hora do almoço, Marcos quebrou o silêncio.
- Sabe, ontem, enquanto procurava você, eu pensava o tempo todo em minha mãe.
- Você me falou muito pouco de sua mãe. – disse Cristina, aliviada por ele ter , finalmente, tomado a iniciativa da conversa.
- É verdade. Falo muito pouco de minha mãe. Ela morreu muito cedo... quando era pequeno, eu podia ouvir, sentir, cheirar, perceber o gosto das coisas de forma extremamente minunciosa. E eu podia voar. Levei algum tempo até descobrir que as outras pessoas não tinham as mesmas habilidades que eu tinha. Lembro das crianças caçoando de mim quando eu perguntava se elas podiam voar...
- É sério? Você achava que todo mundo podia voar?
- Achava. Eu não me sentia especial. Para mim, eu era como qualquer outro...
Cristina segurou sua mão e apertou-a, como se lhe dissesse, através de gestos, que sim, ele era especial para ela.
- Poucos meses depois que descobri esses talentos, comecei a ouvir vozes. Há algum tempo li um livro que dizia que crianças costumam conversar com pessoas desencarnadas e pensei: Era isso! Era isso que acontecia comigo. Eu falava com espíritos e eles me davam conselhos, me antecipavam o futuro... uma vez eles me disseram para não pegar um ônibus e depois descobri que esse ônibus havia sofrido um acidente...
- E a sua mãe?
Marcos abaixou os olhos.
- Um dia ela acordou, disse que o café estava pronto e saiu para trabalhar. Eu estava lavando o rosto quando ouvi o seu grito. Saí correndo. Havia várias pessoas olhando assustadas para um corpo estendido no chão. Eu abri caminho entre elas e encontrei minha mãe caída no chão, o sangue escorrendo de sua boca. Ela morreu em meus braços. Nem deu tempo de chegar ao hospital... Naquele momento, eu tive ódio das vozes que falavam comigo. Por que elas não haviam me avisado? Eu teria voado e tirado minha mãe do caminho do carro... Por que me avisaram quando eu ia pegar o ônibus que sofreria o acidente, mas não me avisaram quando minha mãe ia morrer? Por quê?
Marcos ficou em silencio, como se remoesse essa pergunta dentro de si.
- Talvez ela devesse morrer. – foi a reposta de Cristina. Talvez fosse algo que eles não pudessem lhe contar...
- Sim, talvez. – concordou Marcos, fungando. Mas na época eu só podia pensar que minha mãe estava morta e eles não haviam me avisado. Eu era um menino de 10 anos, sozinho no mundo. De certa forma, amaldiçoei meus talentos, assim como amaldiçoei as vozes. De que me adiantava poder voar, se isso não servira para que eu salvasse minha mãe? De que adiantara minha superaudição se eu não escutara o carro se aproximando dela?
Novo silêncio. Marcos tampou os olhos, tentando esconder as lágrimas.
- Depois disso, nunca mais ouvi as vozes. Também nunca mais usei meus poderes. Até um ponto em que eu me esqueci completamente deles. Isso até alguns dias atrás, quando eu acordei com uma dor de cabeça terrível...
- Você tinha me falado do orfanato, mas nunca tinha me contado sobre sua mãe.
Cristina pegou as mãos de Marcos e olhou com ternura.
- Estou muito feliz ao seu lado. Para mim, você é especial. E estou mais feliz ainda por você estar,finalmente, se abrindo comigo...
Os dois se beijaram e ele a levou para o quarto. Fizeram amor durante muito tempo,
como se não existisse o tempo e quisessem aproveitar cada segundo.

* * *
À tarde, Marcos foi à banca de revistas ver se algum jornal havia noticiado os acontecimentos do dia anterior. Descobriu que a Gazeta Popular publicara uma edição extra, vespertina, para contar os fatos da prisão do chamado “maníaco do porão”. Era uma edição magra, com apenas 12 páginas, letras garrafais e muita propaganda. Mas ainda assim estava “vendendo como banana”, como disse o jornaleiro.
O jornal informava que fora encontrado, inconsciente, na noite anterior, o homem que provavelmente era o responsável pelo desaparecimento de várias mulheres em Santa Helena nos últimos anos. Estavam em um porão. O delegado responsável pelo caso dizia que a prisão só fora possível graças a uma denúncia anônima.
“Junto com ele”, dizia a reportagem, “foram encontradas duas mulheres. Uma delas, identificadas como Wilma Aparecida dos Santos, 31 anos, havia desaparecido há um ano no estacionamento da empresa em que trabalhava. Ela estava desnutrida e com ferimentos nos pulsos e nas pernas. A outra mulher não foi identificada e, segundo os policiais, parece ter desaprendido a andar e a falar”.
A matéria continuava falando sobre as condições em que as mulheres foram encontradas e tinha declaração de um perito da polícia, segundo o qual a mulher não identificada havia sofrido sérios problemas de personalidade: “Esse psicopata conhecia fundamentos de psicologia comportamental e usou isso para condicionar essas mulheres e fazer delas o que bem entendesse”.
Sob o porão os policiais haviam encontrado vários corpos em decomposição e até esqueletos. Aparentemente, o cheiro do cortiço abafava o fedor dos corpos em decomposição, razão pela qual os vizinhos nunca desconfiaram de nada.

A matéria trazia declarações de vários vizinhos dizendo que o maníaco parece absolutamente normal. Uma vizinha lembrou que ele a ajudava a cuidar do jardim e sempre oferecia sucos e biscoitos para as crianças da rua.
Segundo o jornal, o psicopata havia sido derrotado pelo marido da vítima mais recente, mas não sabia dar informações sobre quem era esse misterioso salvador.
Por alguma razão, outra notícia chamou a atenção de Marcos:

FANTASMA ASSOMBRA LOJA DE DEPARTAMENTOS

Um boato está colocando em polvorosa os funcionários de uma loja de departamentos muito conhecida na cidade: o local estaria sendo freqüentado por um fantasma. Uma funcionária afirmou ao nosso jornal que um homem entrou no vestiário e não saiu. Quando foi procurar por ele, encontrou apenas algumas roupas velhas.
Marcos não leu o resto. Dobrou o jornal, colocou debaixo do braço e rumou para casa.
Estava decidido a abandonar a sua vida de vigilante. O que acontecera na noite anterior o deixara preocupado. Ao utilizar suas habilidades, ele teria contato com assassinos, ladrões, traficantes, corruptos... pessoas que poderiam ter o impulso de se vingar. Ele não temia por si, mas por sua esposa grávida.
Marcos havia discutido isso com Cristina e ela concordou. Temia pelo futuro e queria ter o marido ao seu lado, e não voando pela cidade à noite, quando ela ficaria sozinha.
Ele protegeria a cidade, mas quem protegeria sua esposa? As imagens de sua mãe morta, estendida no chão, ensangüentada... Marcos jamais se perdoaria se algo assim acontecesse à sua esposa.
Um Hare Krishna o parou, interrompendo seus pensamentos. Falava rápido e sua voz parecia vazia de significado. Em certo momento ele estendeu a Marcos um livro grosso. Meio a contra-gosto e mais para se livrar do assédio, ele pegou o livro. Chamava-se Bagavad-Gita. Marcos abriu uma página ao acaso e leu:
“Dedica-te à obra exclusivamente, jamais aos seus frutos. Tuas ações não devem ser motivadas pelo proveito que possam trazer; não deve tampouco te abandonares à inação. Firme na yoga, executa tuas obras sem apego nem interesse, permanecendo o mesmo qualquer que seja o resultado, feliz ou adverso”.
Marcos devolveu o livro e voltou a andar, como que hipnotizado. As palavras que lera haviam causado uma impressão profunda em sua alma. Da mesma forma que antes estava decidido a abandonar sua atividade como vigilante, agora estava decidido a continuá-la.
Mas para isso precisava de algo que encobrisse sua identidade. Chegando em casa, conversou sobre isso com Cristina e decidiram-se por um capote e um capuz levantado.
À noite, quando assistia ao telejornal, viu uma matéria especial sobre um homem que estava salvando pessoas na cidade.
A reportagem dizia inclusive, que o estouro do cativeiro do maníaco do porão se devesse a esse misterioso herói.
Nas ruas, algumas pessoas já começavam a lhe dar um nome: anjo.
O anjo. Era assim que o chamavam. Precisava estar à altura do nome.

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