3/26/2006



MAÍRA – A GUERREIRA AMAZONA
Episódio 2 – A primeira missão


Maíra se esquivou para trás de um arquivo de ferro e ficou lá, suportando a chuva de balas que caia sobre ela.
Em meio ao tiroteio, ela sentiu uma suave brisa e a gozou plenamente, em todo o seu frescor. O vento balançava seus cabelos, acariciava seus seios e lambia a pele de seu rosto.
Ela se lembrou dos ensinamentos de Rani, segundo a qual um velho sábio dissera ser tolo aquele que, por medo da morte, não gozava os prazeres da vida.
Seria bom que Maíra fruísse todos os prazeres que a vida pudesse lhe oferecer naquele momento... pois a morte estava próxima.

* * * *

Graças às muitas colaboradoras, prontas a ajudar a causa a qualquer custo, Maíra conseguira um emprego de secretária na GWB Empreedimentos SA. Ninguém sabia exatamente o que fazia essa empresa, mas era certo que seus negócios tinham ênfase no mercado de ações. Havia um misterioso e desconhecido sócio majoritário, que orientava pessoalmente, sempre através de e-mails, cada passo das operações, fosse o dinheiro dele ou dos clientes.
A perspicácia e o senso econômico pouco ortodoxo haviam levado a empresa a faturar bilhões no mercado mundial. No Brasil as cifras movimentadas eram sempre na casa dos sete dígitos. A GWB parecia estar séculos à frente de seus concorrentes.
Maíra evidentemente não foi admitida com seu nome de amazona. Para a empresa, ela era a senhorita Sandra Garcia. Era tratada como Miss Garcia, provavelmente em consonância com a origem geográfica do sócio majoritário, origem essa que se refletia em todos os pequenos aspectos da rotina trabalhista. O almoço, por exemplo, era composto sempre de hambúrguer saboroso como isopor, e coca-cola. Os lanches eram regados a grandes porções de café fraco e rosquinhas.
Maíra também precisou mudar o visual. Ela cortou o cabelo, deixando-o bem curto e passou a usar saia e sapato alto.
A rotina de Miss Garcia na GWB iniciava britanicamente às 8 horas. Ela ligava o computador e verificava os e-mails, a maior parte deles em linguagem codificada. Imprimia os que pareciam mais importantes e enviava, junto com a versão digital, para o presidente. Claro, o presidente não era o sócio majoritário. A maior parte dos funcionários acreditava que nem mesmo o presidente nunca o vira. O presidente era só um testa-de-ferro, que se mantinha no cargo por seguir estritamente as ordens que recebia por e-mail e assim mantinha o gordo salário mensal, o colégio das crianças e a casa na praia.
Muito mais poderosa do que ele parecia ser a chefe de gabinete.
Miss Ross era um típica caucasiana, alta, loira, de olhar frio. Maíra sabia que era ela que decodificava os e-mails e provavelmente era a única pessoa a ter encontros pessoais como sócio-proprietário, se é que alguém os tinha.
Depois de verificar os e-mails e a agenda, Miss Garcia digitava documentos e filtrava as visitas ao presidente.
Às dozes horas paravam para o almoço, ou melhor, lunch, que era composto, geralmente de hambúrguer e refrigerante.
Às duas retornava ao trabalho e era a mesma rotina até o final da tarde, quando Miss Garcia voltava para casa.
Essa rotina se repetiu durante três semanas consecutivas, sem alterações, até certo dia em que Miss Ross a chamou.
- Miss Garcia, encontramos um pequeno problema em seu currículo. Aqui diz que a senhorita trabalhou em uma sapataria de nome Real, mas mandamos um e-mail para lá e eles afirmam que nunca tiveram o prazer de te-la como sua funcionária.
Maíra ficou branca. O currículo, evidentemente, era inventado, mas havia sido checado em cada detalhe para parecer autêntico. Mas, pelo jeito, algo passara pela revisão.
- Miss Garcia, não gostamos de mentiras aqui. – rosnou Miss Ross. Sabe o que fazemos com mentirosos?
Maíra sabia, ou desconfiava. Tinha ouvido histórias sobre funcionários que eram demitidos e desapareciam...
Eles provavelmente matavam quem não era de confiança.

* * *

Maíra avançava pelos corredores do palácio quando ouviu uma voz desconhecida. Era como murmúrios, como se alguém cochichasse.
Seguindo o murmúrio, ela penetrou em uma sala que não conhecia. Lá ela encontrou sua mãe falando alguém que não aparecia. À frente dela, uma imagem diáfana, como fumaça ou névoa.
Janaina silenciou e olhou por cima do ombro. Percebendo a presença da filha, ela deu um passo para o lado, como se apresentasse alguém. Atrás dela havia uma névoa branca no formato de mulher. Era uma velha de cabelos compridos e olhos misteriosos. Com um vestido branco de nuvens, ela flutuava em um tubo transparente.
- Aproxime-me, menina. – disse o espectro, sua voz soando como se saísse do fundo de um poço.
Maíra andou até ficar frente a frente com a imagem diáfana.
- Você estava perdida e foi resgatada. É bom te-la de volta conosco.
Maíra lançou uma olhar indagador para a mãe, mas não houve nenhuma resposta. A moça nunca vira antes o espectro e não sabia o que queria dizer com ter sido resgatada.
A mulher fantasma flutuava encarando Maíra com ternura e mistério.
- Mãe, quem é... ? – gaguejou.
- É sua avó. Ela morreu muito antes de você nascer. Chama-se Selena.
Maíra olhou para o espectro, tentando se acostumar com a idéia de que estava conversando com uma morta. Depois virou-se para a mãe, mas antes que pudesse falar, esta a silenciou colocando um dedo sobre seus lábios.
- Sei que tem muitas perguntas, minha filha, e elas serão respondidas, a seu tempo. Mas agora preciso lhe falar sobre uma missão.
Uma missão! Por alguns instantes Maíra se esqueceu até da presença espectral que flutuava atrás dela, tal era o impacto que a palavra lhe causava. Fazia mais de quatro anos que Maíra pedira por uma missão individual. Naquela época ela era apenas uma menina tentando ajudar as Amazonas a libertarem algumas escravas brancas.
Depois de tanto tempo, achava que a missão não viria, pois não participara nem mesmo de missões em grupo. Passava o tempo todo estudando e treinando. Sua educação incluía línguas , geografia, história, redação e geometria fractal. Além disso, ela estudava tanto a informática rudimentar e grosseira de um Windows quanto a computação mágica das Amazonas, que como tudo ali, era impossível distinguir o que era técnica e o que era magia.
Maíra estudava também filosofia, tendo como mestra a pequena e venerável Rani. Mas as aulas de filosofia não tinham horário ou locais definidos. Aconteciam em qualquer momento, em qualquer lugar, ao sabor da curiosidade da moça. “Aprender filosofia é aprender a pensar”, ensinava Rani. “E pensar significa, na maioria das vezes, romper modelos pré-estabelecidos”. Uma aula com horário e local marcados jamais daria conta da complexidade do pensar filosófico.
- Nós temos um grande inimigo. – disse a Rainha, interrompendo o fluxo de pensamento da filha. Você não sabe muito sobre ele, e na verdade nem nós o conhecemos direito. Sabemos apenas que é guiado por uma ânsia descomunal pelo poder. O poder, minha querida, é uma droga que embriaga e vicia. Nosso inimigo age de forma sorrateira e misteriosa. No entanto, descobrimos que ele está atuando no Brasil através de uma empresa, a GWB Empreendimentos. Aparentemente ele está controlando o fluxo do mercado de ações utilizando o padrão fractal das redes de boatos. Precisamos de alguém que entre lá e descubra informações para nós sobre como estão fazendo isso. Você será esse alguém. Vamos criar um currículo falso para você arranjar-lhe um emprego de secretária...

* * *

- Miss Garcia, sabe o que fazemos com mentirosos? – rugiu Miss Ross, fazendo com que a secretária desse um pulo de espanto.
Ross falava como uma caçadora que acua a presa.
De repente, em meio ao desespero, Maíra percebeu um piscar na tela do computador.
- Miss Ross, parece que chegou e-mail. – disse ela, torcendo para que o truque funcionasse.
A mulher caucasiana, visivelmente contrariada, olhou para a tela.
- Sim, parece que chegou e-mail.
Nada, além do condicionamento de responder e-mails no exato momento em que chegam explica o fato dela deixar o que seria um longo interrogatório para se ocupar do computador.
Enquanto lia a mensagem, mudava sua expressão, de contrariada para intrigada e finalmente para calma.
- Senhorita Garcia, parece que houve um lamentável equívoco. A sapataria Real recentemente mudou de proprietário e sua ficha aparentemente se perdeu no processo, mas estão nos mandando um e-mail confirmando sua passagem por lá. Peço desculpas.
Se a mulher caucasiana tivesse advinhado quem era Miss Ross, teria levando em frente sua investigação, mas ficou nisso.
Maíra gravava em disquetes, ou, quando sentia que isso era perigoso, imprimia uma cópia para si dos e-mails codificados.
À noite, em seu apartamento, ela tentava decodificar as mensagens. O método para isso é antigo e remonta à Idade Média. Enquanto os europeus ainda achavam seguro o processo simples de trocar uma letra por sinal qualquer, os árabes já sabiam como decodificar códigos muitos mais complexos, baseando na probabilidade de ocorrência das letras. Esse método foi brilhantemente ilustrado por Edgar Alan Poe no conto O Escaravelho de Ouro e consiste em fazer uma tabela das letras mais raras, e portanto mais informativas, e as menos raras, e portanto mais redundantes, em uma língua. A seguir o padrão da língua é comparado com os padrões de repetições de sinais nos textos codificados.
Na língua portuguesa, por exemplo, as letras mais comuns são o A e o E. as mais raras são o X, o Y e o Z. Em um texto com grande quantidade de palavras, o sinal que for mais redundante, será, provavelmente, um A ou E.
Os e-mails usava como sinais as próprias letras do alfabeto. Maíra tentou simplesmente dobrar o alfabeto sobre si mesmo, de modo que o Z representasse o A, o X o B e assim por diante. Evidentemente isso não deu resultado. Não era provável que o sócio-majoritário da GWB usasse um código tão simples.
Uma outra tática interessante de decodificação, usada pelos ingleses para descobrir a chave da terrível máquina nazista Enigma, consistia em tentar colas, palavras que provavelmente constavam no texto. Descoberta uma palavra, o resto ficava fácil.
Sendo instruções para o mercado de ações, as mensagens provavelmente deveriam ter palavras como COMPRE, VENDA, AÇÕES. Maíra passou três dias tentando colas e quando conseguiu descobrir uma palavra, deu pulos de alegria. As palavras lhe revelaram nada menos que 11 signos. Daí em diante foi fácil.
Maíra descobriu que cada letras podia ser substituída aleatoriamente por três outras letras. Para tornar mais difícil a decodificação, havia signos que não representavam nada.
Ela escreveu a chave e gravou em um disquete junto com os e-mails de todos os concorrentes da GWB.
No dia seguinte, esperou todos os funcionários saírem e começou a redirecionar os e-mails, daquele dia, junto com as chaves, para as empresas concorrentes.
Ela sabia que o império do inimigo misterioso desmoronaria rapidamente com as informações que estava repassando.
Foi quando começou a ouvir tiros.

* * *

Maíra respirou fundo, tentando identificar, em meio à fumaceira de pólvora, seu próprio perfume adocicado.
De tempos em tempos, levantava e disparava uma rajada com um dos aparelhos que recebera das amazonas, uma pistola disfarçada em estojo de pó compato. Mas sabia que isso apenas atrasaria seus inimigos. Em pouco tempo eles cairiam sobre ela e uma bala acertaria seu crânio.
Então algo aconteceu. Por um momento a chuva de balas cessou, para continuar novamente em outra direção. Maíra esticou a cabeça por cima do arquivo e teve uma surpresa. A cavalaria tinha chegado! Najara avançava com a clava na mão, distribuindo bordoadas como um furacão.
Atrás dela, Rani, em um módulo anti-gravitacional, armava e desarmava seu arco tão rápido que era impossível acompanhar com os olhos.
Mais atrás, também em um módulo anti-gravitacional, Janaina emitia rajadas com seu cetro de rainha.
Os inimigos caiam como plantas no dia da colheita.
Em pouco tempo, Janaina pegava Maíra em seus braços, e desaparecia com ela no módulo anti-gravitacional.
Antes de partir, ela beijou sua filha:
- Bom trabalho, minha querida, bom trabalho.

* * *
Miss Ross avançou, titubeante, pelo largo salão. No final dele, havia uma mesa e uma poltrona de espaldar alto, virada para a janela.
Quinze metro depois, Miss Ross parou, ao pé da mesa.
- Então ela nos venceu, não é mesmo? Uma menina nos venceu... – disse a voz atrás da poltrona.
- O segredo do mercado de ações é justamente o segredo, senhor. Quando souberam como agíamos e quando souberam como estávamos implantando boatos, ficou impossível continuar. Tivemos de pedir falência.
- Isso significa prejuízo, não é mesmo?
- Sim, senhor.
- Tudo por causa daquela potranca?
- Isso mesmo, senhor.
- Sabe o que fazemos com pontrancas que não se deixam domar?
- O que, senhor?
A poltrona se virou, revelando um homem baixo, de orelhas grande, rosto de chimpanzé e chapéu de cowboy.
- Nós sacrificamos, Miss Ross. É isso que fazemos com potrancas que nos dão trabalho.
A mulher sentiu um esgar de morte. Sua garganta se fechou e tremores percorreram seu corpo. Suas pernas bambearam e ela caiu, estrebuchando.
O homenzinho ficou em pé, para olhar por cima da mesa, enquanto dizia, divertido:
- A vida é um rancho, Miss Ross. É o que dizemos lá no Texas!

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