3/05/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 2 – UM SONHO DE VOAR

Ele sonhou que estava voando. Seu corpo deslizava suavemente pelas partículas de ar, quebrando barreira, ignorando a gravidade. Atravessava nuvens e comungava com as estrelas, respirando liberdade...
Marcos acordou. Não abriu os olhos, mas advinhou que ainda era noite. Sentia frio, mas, curiosamente, o frio vinha de baixo, não de cima. Era como se a cama tivesse desaparecido. Lutou entre dois opostos: a vontade de continuar dormindo e a necessidade de abrir os olhos para puxar a coberta. Finalmente, abriu os olhos e espantou-se com a proximidade do teto. Era como se a parede tivesse encurtado. Teve, então, a idéia de olhar para baixo e descobriu o que realmente estava acontecendo: ele estava flutuando quase meio metro acima do colchão. O lençol se elevara com ele, mas continuava cobrindo Cristina.
Marcos entrou em desespero, mas ouviu uma voz sussurrando em seu ouvido, acalmando-o.
Ele desejou estar de volta à cama e, como se respondesse a um comando secreto, seu corpo foi descendo até ser depositado calmamente no chão.
***
No banco, no dia seguinte, Marcos deparou-se com os colegas lendo as manchetes do Gazeta Popular. Pediu para dar uma e leu, enquanto um colega dizia “Só faltava essa!”.
LADRÕES DORMEM DURANTE ASSALTO
Dois menores, que assaltavam e tentavam violentar uma mulher na quinta-feira à noite, no bairro de São Francisco, dormiram enquanto praticavam o crime. A vítima também dormiu. Os dorminhocos foram encontrados ontem de manhã pela polícia, depois de denúncias de vizinhos. Entrevistados, os acusados disseram que não sabiam o que havia acontecido. É, pelo jeito o assalto estava tão monótono que deu sono...
- Era só o que faltava, hein? Ladrão dormindo no serviço. – disse um colega.
- Olha só quem fala! Até parece que você não dorme no banheiro. – lembrou outro.
- Aquilo não é sono, é meditação.
Nisso o vigilante se aproximou.
- Seu Marcos, deixaram um bilhete para o senhor.
E entregou um pedaço de papel dobrado e grampeado, com seu nome em um dos lados.
- Como assim? Quem deixou?
- Não sei. Devem ter jogado por debaixo da porta... tem seu nome aí.
Marcos abriu o grampo. Havia apenas uma frase, em letras maiúsculas:
EU SEI TUDO.
Marcos dobrou o papel e colocou-o no bolso, olhando à volta para se certificar de que ninguém mais havia lido seu conteúdo.
- O que foi? – perguntou um amigo.
- Nada, trote.
- Sei, viu a história do garoto que foi seqüestrado?
- Garoto seqüestrado?
- Onde você estava, na lua?
- Que garoto?
- Seqüestraram o filho de um comerciante. O garoto tem cinco anos. Estão pedindo três milhões. O pai diz que não tem esse dinheiro. Eles cortaram um dedo do garoto e mandaram para o pai...
- E a polícia?
- Nenhuma pista. Agora vamos para o trabalho que o gerente está chamando...
***
À tarde, quando saiu do trabalho, Marcos pegou um ônibus que não pegava normalmente. Ele sabia que, com isso, ia dar uma volta muito maior. Mas não se importava. Era como se vozes o influenciassem em sua decisão.
Quando chegou a um terminal, pegou outro ônibus e foi à janela, atento aos sons que chegavam da rua. Era uma miríade de sons variados que se misturavam num todo caótico, que Marcos separava em pequenas partes e as analisava uma a uma. Ele ouviu cachorros latindo, ouviu o choro de bebês, ouviu um casal brigando por causa de um controle remoto, ouviu um fusca velho tossindo e escarrando, incapaz de sair do lugar.
De vez em quando ele ouvia uma música agradável e concentrava a atenção nela, mas depois voltava a rastrear os sons, como se procurasse a sintonia no dial de um rádio.
Já estava muito longe de casa e do banco quando ouviu algo que chamou sua atenção. Desceu na parada seguinte. Ia concentrado, com medo de perder a voz na qual estava concentrado.
Finalmente parou na frente de uma casa que parecia abandonada. Mas não estava, como atestava o cadeado novo na grade do portão. Era uma casa ampla, de classe média, com telhado de telhas de barro.
Marcos olhou para o lado, para se certificar de que não havia ninguém na rua, e então se elevou no ar. Pousou sobre o telhado, com cuidado para não fazer barulho. Levantou uma das telhas e olhou para baixo. Era um quarto pequeno, com a porta trancada. Tinha um garoto ali, sentado em um cama com os braços enlaçados nas pernas dobradas. O garoto chorava e tremia.
Marcos recolocou a telha no lugar e se elevou no céu, descendo novamente em outra rua, ao lado de um orelhão. Fez uma ligação, utilizando o último crédito de seu cartão, e voltou a a se elevar no céu. Quando pousou novamente, estava sobre o telhado da casa. Procurou a telha que havia retirado antes e afastou-a. depois outra e outra, até abrir um espaço suficiente para poder entrar.
O garoto ouviu o barulho e olhou para cima. Marcou levou o dedo médio aos lábios, em sinal de silencio, e piscou para ele.
- Vou tira-lo daqui. – disse, pousando ao lado da cama.
Os olhos do garoto brilharam.
- Meu pai mandou você?
- Eu sei quem foi. Minha avó. Ele apareceu num sonho e disse que um anjo ia me salvar.
- Silêncio agora.
Marcos pegou o garoto no colo e começou a flutuar no ar, na direção do buraco no teto. Nisso ouviu o barulho de um trinco e o rangido da porta.
- Ei, o que está acontecendo?
O homem sacou uma arma e começou a atirar, mas Marcos e o menino já tinham desaparecido. Ouvia-se sirenes.
***
À noite, Marcos assistia o noticiário com a esposa. A principal notícia era a libertação do garoto.
REPÓRTER: O garoto foi liberado depois de 40 dias de cativeiro. O seqüestro teve momentos dramáticos, como quando os pais receberam uma caixa com o dedo do menino, mas acabou bem. O cativeiro foi descoberto graças a uma denúncia anônima, mas quando a polícia chegou ao local, Rodrigo já havia fugido e estava a duas quadras de distância. Estamos aqui com o delegado responsável pelo caso. Delegado, como o menino conseguiu fugir?
DELEGADO: Realmente não sabemos. Aparentemente ele fugiu pelo telhado, mas a parede era muito alta e não havia nada para ele subir. É um mistério...
REPÓRTER: O que o garoto diz?
DELEGADO: Ele afirma que foi salvo por um anjo enviado pela avó. Essas fantasias infantis são comuns em casos de stress como esse. A pessoa cria uma fantasia para fugir da realidade.
REPÓRTER: Rodrigo passou por uma avaliação psicológica?
DELEGADO: Sim, e ele estava calmo, apesar do que aconteceu. Achamos que a fantasia do anjo e a lembrança da avó morta o ajudaram a lidar com a situação.
REPÓRTER: Obrigado, delegado. Voltamos agora aos nossos estúdios.
ÂNCORA: É, parece que temos um anjo cuidando da cidade....

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