3/13/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 3 - PESADELO


Marcos dormia. Em seu sonho, ele era criança e tinha amigos invisíveis. Eles falavam com ele, aconselhando-o. Falavam de seus sentidos e de como ele não eram bem usados. Poderiam ser muito melhores, se ele aprendesse. Poderia ouvir melhor, ver melhor, sentir sabores que jamais havia imaginado e sentir cheiros tão frágeis que um cachorro se enganaria com eles.
Eles lhe disseram que poderia voar também... e ele voou. Seu corpo elevou-se acima do solo, voando acima das casas.
Em seu sonho, ele se lembrou de sua mãe lhe contando uma história. Uma parábola da Bíblia.
“Um senhor muito rico ia viajar”, dizia ela. “Ele chamou três de seus servos. Para o primeiro, entregou cinco talentos. Para o segundo, dois e para o último, um.
Depois de muito tempo, ele retornou e mandou chamar os servos. O primeiro chegou e disse: Senhor, investi os cinco talentos que me confiaste e com eles lucrei mais cinco. E entregou o dinheiro, mas o senhor devolveu a ele dizendo: Foste um bom servo e tens direito a teus talentos.
Então o senhor chamou o outro servo. Senhor, disse o servo, investi os dois talentos que me entregaste e ganhei mais dois. Mais uma vez, o senhor entregou todo o dinheiro ao servo, elogiando-o.
Finalmente, entrou o último servo, trazendo na mão apenas um talento. Senhor, disse o servo, fiquei com medo de ti e enterrei o talento que me deste. Aqui está.
O senhor o amaldiçoou: Eu te dei o talento para que o multiplicasse, não para que o enterrasse. Servo mal. Ficarás preso onde haja choro e ranger de dentes.”
Marcos se lembrava de sua mãe lhe contando essa história. ela estava sentada à beira da cama, falando com sua voz calma e tranqüilizadora... e no instante seguinte estava morta!
***
- Querido, o que foi?
Marcos olhou à volta, tentando descobrir onde estava. Por um instante pareceu-lhe que estava em seu quarto de infância e só percebeu o engano quando viu Cristina ao seu lado. Apesar do ar-condicionado, ele suava e sua testa estava molhada.
- O que aconteceu? Você deu um grito...
- Nada. Um pesadelo, só isso.
De manhã, enquanto tomavam café, Cristina perguntou se estava tudo bem.
- Tudo ótimo. Foi só um pesadelo...
- Bem, talvez eu tenha uma razão para deixa-lo feliz. Você chegou tão tarde ontem e depois pareceu tão interessado nas notícias sobre o fim do seqüestro do garoto, que acabei não contando...
- Contando o quê?
- Uma novidade.
- Eu sei que é uma novidade. Apenas me conte o que é.
- Eu... bem... eu estou grávida!
- Grávida?
- As minhas regras estavam atrasadas uma semana e você sabe o quanto o meu ciclo é regular. Então eu fiz um exame e deu positivo...
Marcos ficou olhando para ela, perplexo.
- Grávida...
Por alguma razão, o bilhete que recebera no dia anterior veio à sua mente: EU SEI TUDO.
- E então, não está feliz?
- Claro, estou muito feliz!
Levantou e foi beija-la. Depois ajoelhou-se e beijou a barriga da esposa.
Quando saía de casa, lembrou-se que não havia olhado a caixa de correspondência no dia anterior. Abriu a caixa e lá dentro havia contas para pagar, catálogos e uma estranha carta, sem remetente e sem carimbo do correio. Marcos estava já no ônibus quando abriu a carta e suas mãos ficaram trêmulas. No papel havia apenas uma frase: EU SEI ONDE VOCÊ MORA.
***
Maria Rita estava molhando uma toalha para colocar ao redor do pescoço quando começou a ouvir passos. Sua visão estava turva em decorrência da fumaça. Ela estava sufocada, tossindo e mal podia manter-se de pé, mas mesmo assim conseguiu distinguir um homem se aproximando dela.
- Estou aqui para salva-la. – disse o desconhecido e sua voz tinha o timbre da esperança.
- Não há como. Estamos mortos. – a voz estava embaçada pela fumaça e o esforço de falar parecia inútil. Os andares de baixo estão pegando fogo. Não há como subir. O fogo tomou as escadas. Só nos resta pular da janela, mas são dez andares...
O homem pegou em seu ombro e tranqüilizou-a:
- Não se preocupe. Você vai ser salva.
Ele pegou-a pela mão e saiu com ela do banheiro. A fumaça subia, tomando conta de tudo e tornando impossível avançar sem tropeçar ou bater nos móveis. As instalações elétricas começavam a pipocar em estalos prateados. A encanação de gás explodiu e a cozinha foi tomada pelo fogo.
Maria Rita recuou, aterrorizada.
-Vamos, se ficarmos mais tempo, estaremos mortos.
A mulher deixou-se arrastar até a sacada. Ar, ar puro. Ela respirou profundamente, aproveitando seus últimos momentos de vida.
- Segure-se em mim. – pediu o homem. Vamos sair daqui.
- Não, eu não vou pular. Prefiro morrer queimada.
Histérica, Maria Rita fechou os olhos, sentou no chão da sacada e começou a chutar a perna do desconhecido.
- Vá embora! Vai embora! Eu não vou pular!
De repente seus pés não alcançaram mais nada. Ela abriu os olhos, lutando contra as lágrimas e a ardência, procurando o homem, mas só o encontrou quando olhou para cima. Ele estava flutuando no ar, como se suspenso por linhas invisíveis e mágicas.
- Você não vai cair.- disse ele.
Ela se levantou chorando – e as lágrimas já não eram mais apenas por causa da fumaça – e se agarrou a ele. Os dois flutuaram em minutos seus pés tocavam o chão da rua. Muitas pessoas a cercaram, tentando ajuda-la. Depois de algum tempo ela olhou à volta, mas seu salvador havia desaparecido em meio à multidão.

***
Marcos chegou em casa exultante naquela noite. Ele pensava seriamente em falar para a esposa como havia salvo a vida de uma mulher em um incêndio, mas não havia ninguém em casa.
A bolsa de Cristina estava sobre o sofá, mas a casa estava silenciosa. Preocupado, ele andou até a cozinha. Havia um papel branco dobrado sobre a mesa. Marcos abriu o papel. Havia apenas uma frase nele:

VOCÊ NÃO SABE ONDE ELA ESTÁ.

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