4/22/2006


MAÍRA – A GUERREIRA AMAZONA
Episódio 3 – O diário de Sir Burton


Maíra percorria em silêncio os corredores do palácio. Provavelmente nunca se acostumaria com a grandiosidade do local.
Algumas amazonas passavam por ela e a cumprimentavam. Além de ser filha adotiva da rainha, a garota ganhara o respeito das outras graças ao sucesso de sua última missão.
Os corredores pareciam formar um labirinto no qual qualquer um poderia se perder. E, a cada vez que os percorria, Maíra encontrava salas que não conhecia. Dessa vez, não foi diferente. Maíra deparou-se com o que parecia ser uma biblioteca. Livros, em sua maioria muito antigos, avolumavam-se nas paredes laterais.
A garota aproximou-se de uma estante e retirou um livro a esmo. Era um pequeno volume encadernado em couro. Tinha o formato estreito, como se tivesse sido feito para ser colocado no bolso.
Maíra abriu e viu que se tratava de uma espécie de diário, escrito a lápis.
- Olá, menina.
Maíra pulou de susto. Era sua mãe adotiva, a rainha.
- Não, não se assuste. Está tudo bem. Você, sendo minha filha, tem direito de conhecer alguns segredos. Lembra-se que uma vez você me perguntou se algum homem branco já havia entrado na cidade das amazonas?
- Sim. – recordou Maíra.
- Um único homem branco penetrou por nossos portões. Sua história está contada nesse diário.
- Posso ler?
- Pode. Fique à vontade.
Maíra sentou-se em uma cadeira, apoiou o livro na mesa de mármore e mergulhou na leitura.


DIÁRIO DE SIR. RICHARD BURTON

A lenda das amazonas é uma das mais antigas do mundo. Remonta aos antigos gregos, mas permaneceu por séculos como fruto da imaginação prodigiosa dos helênicos, até ser renovada pela descoberta do Novo Mundo. Um navegador chamado Orelana afirmou ser sido atacado por mulheres guerreiras enquanto navegava um rio que, por isso, chamou-se Amazonas.
Agora, séculos depois, um homem afirma ter informações concretas sobre o paradeiro das amazonas. Seu nome é Lopez e ele garante que a tribo de mulheres guerreiras se encontra no extremo norte do país, na província do Grão Pará, mais especificamente na Serra do Tumucumaque.
Baseado nas informações que lhe foram fornecidas pelos índios, ele pretende me levar até lá. Saímos do Rio de Janeiro há alguns dias. É possível que Lopez seja apenas um trambiqueiro, mas conhecer a Amazônia vale o esforço e pode me fazer esquecer o enfadonho serviço de cônsul britânico no Brasil. Depois de ter percorrido a África em busca da nascente do Nilo, meu sangue parece ter sido infectado com a doença da aventura...

* * *
Aportamos em Belém do Grão Pará. Ficamos em um hotel próximo ao porto e conhecemos um local pitoresco que os habitantes locais chamam de Ver-o-peso. São barracas e mais barracas de comidas típicas, peixes, frutas e verduras. Experimento o suco de uma fruta chamada cupuaçu e uma comida pesada que eles chamam de maniçoba. É uma espécie de feijoada, mas tem folhagem verde-escura no lugar do feijão. A mulher da barraca diz que a folhagem é retirada da mandioca e que leva uma semana cozinhando para fazer evaporar o veneno. O composto tem aspecto desagradável de excremento, mas o gosto é bom.
Uma outra senhora me vende uma pomada feita de gordura de boto, um golfinho local e me garante que tem efeito milagroso sobre a vida sexual de quem a usa. Se soubesse que traduzi o Kama Sutra para o inglês talvez pensasse duas vezes antes de me vender esse tipo de coisa.

* * *
De Belém, pegamos um navio para Santana, no norte do Grão- Pará. É um porto pequeno, mas de boa profundidade. Apesar disso, tem pouco movimento. Aqui recrutamos três homens para nos acompanhar. A partir de agora não há mais navios e temos de seguir em barcos a remo.

* * *
Estou fora de forma. Estamos embrenhados na floresta há dois dias e já começo a sentir os sintomas de fadiga. O tempo é cruel e não respeita patentes. Avançamos lentamente pelo matagal. A floresta aqui é bem diferente daquelas da Europa ou da África. As árvores são muito altas, o que não impede a existência de vegetação rasteira. Assim, temos de abrir caminho por um emaranhado de folhagens, raízes e cipós, que muitas vezes se tornam um obstáculo instransponível, fazendo com que desviemos diversas vezes do caminho.
A noite cai repentinamente sobre a floresta, como se o céu foi fosse coberto por um véu negro.
Nossos guias não se atrevem a viajar à noite e nem eu os forçaria a isso. Sete horas da noite e a floresta já está tomada de tal escuridão que é impossível enxergar dois palmos à frente e os insetos tomam o poder, atacando de todos os locais possíveis. Pouco antes que caia a noite, nós paramos, montamos acampamento, e acendemos a fogueira, tomando o cuidado de limpar a área em volta das milhares de folhas que caem continuamente das árvores, para evitar incêndios.
Sons estranhos, como tambores, retumbam na escuridão. Os caboclos dizem que é o Curupira que testa a resistência das árvores antes das chuvas. Dizem que o Curupira é um menino de cabelos de fogo e pés para trás.
De fato, chove torrencialmente e a floresta vira um inferno. Dormimos em redes e ficamos ensopados. O barulho das gotas d’água desabando sobre as folhas dá a impressão de que estamos rodeados por um exército de pequenos homens em dança de guerra. No meio da noite a floresta alaga e somos obrigados a levantar mochilas e todos os outros pertences, pendurando-os no alto das árvores.
A chuva pára, mas, ensopado, sou dominado por um medo ancestral da rede ser invadida por uma cobra. Os homens acordam cedo e ouço-os falando baixo. Pergunto a Lopez sobre isso.
- Eles falam sobre o Mapinguari. – responde ele.
- Mapinguari?
- É um ser da floresta. Dizem que se parece com um macaco peludo, mas tem mais de dois metros e não possui pescoço, de modo que a cabeça emenda diretamente com o ombro.
- Apavorante. – comento.
- Ainda não ouviu a melhor parte. Conta-se que o Mapinguari tem a boca na barriga. Uma bocarra enorme, cheia de dentes finos como os de tubarão e de onde saiu um hálito fétido...

* * *
A comida que trouxemos acabou. Estamos nos alimentando de peixe, camarão e uma fruta escura de nome açaí, que os caboclos esquentam para que a polpa amoleça e espremem na água, formando um suco grosso e nutritivo. Felizmente, essa fonte de alimentação é abundante.

* * *
Lopez está tendo febre toda noite. Ele tem calafrios e balbucia coisas frases ininteligíveis. Os nativos dizem que ele está com malária. Eles preparam chás com plantas da floresta, mas nada parece resolver.

* * *
Lopez desapareceu durante a noite. Enquanto dormíamos, ele provavelmente caiu de sua rede e saiu em delírio pelo breu da floresta.

* * *
Estou dormindo quando sinto algo apertando minha garganta. É Lopez. Ele tem os cabelos desgrenhados e baba, como um cão raivoso. Nós lutamos e os outros acordam. Ele finalmente consegue me imobilizar e, pegando uma adaga, prepara-se para perfurar o meu crânio quando um caboclo o antige com uma pedra. Lopez cai ao chão e os outros sobre ele. Depois de uma luta feroz, o pobre homem acaba morto.

* * *
Os guias estão tensos e falam entre si. Dizem que a expedição é amaldiçoada e que os seres da floresta se voltaram contra nós. Eles tentam me convencer a voltar, mas afirmo categoricamente que irei até o fim, até o meu objetivo ou minha morte.

* * *
Estou perdido. Os nativos acordaram antes de mim e fugiram. Levaram todas as coisas, exceto minha mochila, a rede e um facão. Dentro da mochila tenho uma troca de roupa, uma bússola, um cantil e um caderno, mas não comida. Estou perdido.

* * *
Já faz dois dias que estou perdido. Tenho procurado andar na direção noroeste, onde, teoricamente, fica a cidade das Amazonas, mas não há pontos de referência e mesmo a bússola é de pouca utilidade, pois a densidade da floresta constantemente me desvia do caminho. A fome corrói meu estômago, mas felizmente foi possível achar água limpa em uma fonte e pude encher o cantil.

* * *

Três dias perdido. Achava que morreria de fome quando encontrei uma árvore frondosa, em formato de pinheiro, repleta de frutos vermelhos que aqui chamam de jambo. Embora a casca seja vermelha, o fruto é branco por dentro e muito agradável ao paladar.

* * *

Quatro dias perdido. Comi o quanto pude da fruta vermelha, enchi minha mochila com elas e me pus a caminho. Depois de vários dias sozinho, os barulhos da floresta me assustam. De tempos em tempos, ouço galhos quebrando e folhas secas sendo pisadas. É como se estivesse sendo seguido. A floresta parece ter vida e espiona cada passo meu. Em meu estado paranóico, sinto como se os pássaros que cantam e trinam formassem uma rede secreta e mágica de informações sobre o forasteiro que ousa desafiar a mata.
O pior é quando chove.
As gotas fortes da chuva batendo contra as folhas secas formam uma orquestra de sons abafados e assustadores... e me pergunto se seres estranhos não se aproveitam disso para se aproximar e me vigiar.

* * *

Quinto dia. Estou completamente perdido, andando em círculos e voltando sempre para o mesmo lugar. As frutas acabaram e a fome me consome. Também tenho sede e sobrevivo lambendo as folhas molhadas pelo orvalho da madrugada.

* * *

Sexto dia. Sinto febre e calafrios. Embora esteja em pleno Equador, sinto frio como se estivesse no inverno londrino. Vago pela floresta a esmo. Não sei para onde estou indo.

* * *

Sétimo dia. Vaguei o dia e a noite inteira, queimando em febre, assustado com cada som da floresta, tropeçando nos galhos, importunado por moscas que me parecem gigantescas.

Então, quando acreditava que ia morrer, quando caía ao chão, desfalecido, disposto a aguardar pelo fim, vi vultos brancos se aproximando. No começo eram como névoa, mas logo distingui formas e percebi que eram mulheres. Elas deviam estar em carregando em uma espécie de maca. Entramos em uma clareira e visualizei um enorme portão que me pareceu feito de ouro. O portão se abriu para nós e entramos na cidadela por uma praça enorme e suntuosa. A febre me consumia, mas eu só conseguia pensar em uma coisa: finalmente havia chegado à cidade das Amazonas!
Depois disso o véu da inconsciência cobriu meus olhos e adormeci em meio a sonhos dourados.

* * *

Não sei quantas horas dormi. Talvez tenha dormido dias seguidos. Acordo com uma mulher ao meu lado, me oferecendo uma espécie de sopa. Ao contrário do que eu imaginava, ela não se veste como uma deusa grega. Na verdade, ela usa um vestido curto de tecido leve, adornado com penas. Nos pés, usa uma sandália de couro e uma tiara de couro na cabeça.
O quarto em que estou tem teto alto e parece ser feito todo de pedra. Estou deitado em uma cama de madeira nobre enfeitada em alto-relevo com imagens de mulheres guerreiras, preparando-se para a guerra. As figuras parecem saídas de um templo inca ou maia.
Quando me sinto melhor o bastante para poder caminhar, minha enfermeira me leva para fora. O palácio tem corredores largos e compridos e sua arquitetura lembra os palácios incas sobre os quais li diversos relatos.
Mais uma vez me deparo com a praça que vira ao chegar, mas agora, vista sem o véu da febre e da inconsciência, ela me parece incrivelmente bela. Nem mesmos os jardins do sultão de Bagdá rivalizariam com ela. Há belos e poderosos arcos de pedra com imagens em alto-relevo que parecem cantar, na linguagem muda das rochas, os feitos das amazonas. Flores as mais variadas se espalham pelo espaço vazio em tal quantidade que a praça toda parece exalar um perfume inebriante.
Aqui e ali, sentadas em bancos, belas mulheres conversam ou lêem enquanto ando entre elas. Uma delas me inpressiona ao ler um livro aparada apenas na ponta de um pé, tendo a outra perna sobrada, como um iogue.
Atravessamos a praça e entramos naquela que parece ser a construção principal do conjunto. Atravessamos imensos portais de madeira e depois um salão. Finalmente paramos na frente de um trono.
Eu, acostumado a lidar com pessoas poderosas, prosto-me ao chão, mas uma voz suave como a brisa da primavera ordena que eu me levante. Então olho para cima e vejo uma mulher de cabelos longos e pretos. Seus olhos, negros como a noite, são repletos de curiosidade e gosto de aventura. É a rainha, e chama-se Maíra.
Passo vários dias na cidadela das Amazonas. A rainha faz perguntas e mais perguntas sobre o mundo lá fora e desconfio que seu grande interesse no mundo exterior não é bem visto pelas outras. Conto-lhe sobre minhas andanças pelo mundo árabe e pela África. Quando digo que a Inglaterra é o maior império do Mundo, ela ri.
Estou recuperado, e Maíra diz que devo voltar para onde vim. Vão me conseguir um guia indígena, que me levará até um local povoado.

* * *

Maíra levantou os olhos do caderno, entre intrigada e extasiada.
- A única exigência que fizemos foi que ele deixasse conosco seu diário. – explicou Najara. Um grupo de índios o levou em segurança até a cidade mais próxima.
- Há algo que não entendo...- disse Maíra.
- O que é?
- A rainha, chamava-se Maíra...
- Há muitas coisas que você não sabe, querida. Mas não se preocupe: tudo tem seu tempo... tudo tem seu tempo...

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