3/26/2006



MAÍRA – A GUERREIRA AMAZONA
Episódio 2 – A primeira missão


Maíra se esquivou para trás de um arquivo de ferro e ficou lá, suportando a chuva de balas que caia sobre ela.
Em meio ao tiroteio, ela sentiu uma suave brisa e a gozou plenamente, em todo o seu frescor. O vento balançava seus cabelos, acariciava seus seios e lambia a pele de seu rosto.
Ela se lembrou dos ensinamentos de Rani, segundo a qual um velho sábio dissera ser tolo aquele que, por medo da morte, não gozava os prazeres da vida.
Seria bom que Maíra fruísse todos os prazeres que a vida pudesse lhe oferecer naquele momento... pois a morte estava próxima.

* * * *

Graças às muitas colaboradoras, prontas a ajudar a causa a qualquer custo, Maíra conseguira um emprego de secretária na GWB Empreedimentos SA. Ninguém sabia exatamente o que fazia essa empresa, mas era certo que seus negócios tinham ênfase no mercado de ações. Havia um misterioso e desconhecido sócio majoritário, que orientava pessoalmente, sempre através de e-mails, cada passo das operações, fosse o dinheiro dele ou dos clientes.
A perspicácia e o senso econômico pouco ortodoxo haviam levado a empresa a faturar bilhões no mercado mundial. No Brasil as cifras movimentadas eram sempre na casa dos sete dígitos. A GWB parecia estar séculos à frente de seus concorrentes.
Maíra evidentemente não foi admitida com seu nome de amazona. Para a empresa, ela era a senhorita Sandra Garcia. Era tratada como Miss Garcia, provavelmente em consonância com a origem geográfica do sócio majoritário, origem essa que se refletia em todos os pequenos aspectos da rotina trabalhista. O almoço, por exemplo, era composto sempre de hambúrguer saboroso como isopor, e coca-cola. Os lanches eram regados a grandes porções de café fraco e rosquinhas.
Maíra também precisou mudar o visual. Ela cortou o cabelo, deixando-o bem curto e passou a usar saia e sapato alto.
A rotina de Miss Garcia na GWB iniciava britanicamente às 8 horas. Ela ligava o computador e verificava os e-mails, a maior parte deles em linguagem codificada. Imprimia os que pareciam mais importantes e enviava, junto com a versão digital, para o presidente. Claro, o presidente não era o sócio majoritário. A maior parte dos funcionários acreditava que nem mesmo o presidente nunca o vira. O presidente era só um testa-de-ferro, que se mantinha no cargo por seguir estritamente as ordens que recebia por e-mail e assim mantinha o gordo salário mensal, o colégio das crianças e a casa na praia.
Muito mais poderosa do que ele parecia ser a chefe de gabinete.
Miss Ross era um típica caucasiana, alta, loira, de olhar frio. Maíra sabia que era ela que decodificava os e-mails e provavelmente era a única pessoa a ter encontros pessoais como sócio-proprietário, se é que alguém os tinha.
Depois de verificar os e-mails e a agenda, Miss Garcia digitava documentos e filtrava as visitas ao presidente.
Às dozes horas paravam para o almoço, ou melhor, lunch, que era composto, geralmente de hambúrguer e refrigerante.
Às duas retornava ao trabalho e era a mesma rotina até o final da tarde, quando Miss Garcia voltava para casa.
Essa rotina se repetiu durante três semanas consecutivas, sem alterações, até certo dia em que Miss Ross a chamou.
- Miss Garcia, encontramos um pequeno problema em seu currículo. Aqui diz que a senhorita trabalhou em uma sapataria de nome Real, mas mandamos um e-mail para lá e eles afirmam que nunca tiveram o prazer de te-la como sua funcionária.
Maíra ficou branca. O currículo, evidentemente, era inventado, mas havia sido checado em cada detalhe para parecer autêntico. Mas, pelo jeito, algo passara pela revisão.
- Miss Garcia, não gostamos de mentiras aqui. – rosnou Miss Ross. Sabe o que fazemos com mentirosos?
Maíra sabia, ou desconfiava. Tinha ouvido histórias sobre funcionários que eram demitidos e desapareciam...
Eles provavelmente matavam quem não era de confiança.

* * *

Maíra avançava pelos corredores do palácio quando ouviu uma voz desconhecida. Era como murmúrios, como se alguém cochichasse.
Seguindo o murmúrio, ela penetrou em uma sala que não conhecia. Lá ela encontrou sua mãe falando alguém que não aparecia. À frente dela, uma imagem diáfana, como fumaça ou névoa.
Janaina silenciou e olhou por cima do ombro. Percebendo a presença da filha, ela deu um passo para o lado, como se apresentasse alguém. Atrás dela havia uma névoa branca no formato de mulher. Era uma velha de cabelos compridos e olhos misteriosos. Com um vestido branco de nuvens, ela flutuava em um tubo transparente.
- Aproxime-me, menina. – disse o espectro, sua voz soando como se saísse do fundo de um poço.
Maíra andou até ficar frente a frente com a imagem diáfana.
- Você estava perdida e foi resgatada. É bom te-la de volta conosco.
Maíra lançou uma olhar indagador para a mãe, mas não houve nenhuma resposta. A moça nunca vira antes o espectro e não sabia o que queria dizer com ter sido resgatada.
A mulher fantasma flutuava encarando Maíra com ternura e mistério.
- Mãe, quem é... ? – gaguejou.
- É sua avó. Ela morreu muito antes de você nascer. Chama-se Selena.
Maíra olhou para o espectro, tentando se acostumar com a idéia de que estava conversando com uma morta. Depois virou-se para a mãe, mas antes que pudesse falar, esta a silenciou colocando um dedo sobre seus lábios.
- Sei que tem muitas perguntas, minha filha, e elas serão respondidas, a seu tempo. Mas agora preciso lhe falar sobre uma missão.
Uma missão! Por alguns instantes Maíra se esqueceu até da presença espectral que flutuava atrás dela, tal era o impacto que a palavra lhe causava. Fazia mais de quatro anos que Maíra pedira por uma missão individual. Naquela época ela era apenas uma menina tentando ajudar as Amazonas a libertarem algumas escravas brancas.
Depois de tanto tempo, achava que a missão não viria, pois não participara nem mesmo de missões em grupo. Passava o tempo todo estudando e treinando. Sua educação incluía línguas , geografia, história, redação e geometria fractal. Além disso, ela estudava tanto a informática rudimentar e grosseira de um Windows quanto a computação mágica das Amazonas, que como tudo ali, era impossível distinguir o que era técnica e o que era magia.
Maíra estudava também filosofia, tendo como mestra a pequena e venerável Rani. Mas as aulas de filosofia não tinham horário ou locais definidos. Aconteciam em qualquer momento, em qualquer lugar, ao sabor da curiosidade da moça. “Aprender filosofia é aprender a pensar”, ensinava Rani. “E pensar significa, na maioria das vezes, romper modelos pré-estabelecidos”. Uma aula com horário e local marcados jamais daria conta da complexidade do pensar filosófico.
- Nós temos um grande inimigo. – disse a Rainha, interrompendo o fluxo de pensamento da filha. Você não sabe muito sobre ele, e na verdade nem nós o conhecemos direito. Sabemos apenas que é guiado por uma ânsia descomunal pelo poder. O poder, minha querida, é uma droga que embriaga e vicia. Nosso inimigo age de forma sorrateira e misteriosa. No entanto, descobrimos que ele está atuando no Brasil através de uma empresa, a GWB Empreendimentos. Aparentemente ele está controlando o fluxo do mercado de ações utilizando o padrão fractal das redes de boatos. Precisamos de alguém que entre lá e descubra informações para nós sobre como estão fazendo isso. Você será esse alguém. Vamos criar um currículo falso para você arranjar-lhe um emprego de secretária...

* * *

- Miss Garcia, sabe o que fazemos com mentirosos? – rugiu Miss Ross, fazendo com que a secretária desse um pulo de espanto.
Ross falava como uma caçadora que acua a presa.
De repente, em meio ao desespero, Maíra percebeu um piscar na tela do computador.
- Miss Ross, parece que chegou e-mail. – disse ela, torcendo para que o truque funcionasse.
A mulher caucasiana, visivelmente contrariada, olhou para a tela.
- Sim, parece que chegou e-mail.
Nada, além do condicionamento de responder e-mails no exato momento em que chegam explica o fato dela deixar o que seria um longo interrogatório para se ocupar do computador.
Enquanto lia a mensagem, mudava sua expressão, de contrariada para intrigada e finalmente para calma.
- Senhorita Garcia, parece que houve um lamentável equívoco. A sapataria Real recentemente mudou de proprietário e sua ficha aparentemente se perdeu no processo, mas estão nos mandando um e-mail confirmando sua passagem por lá. Peço desculpas.
Se a mulher caucasiana tivesse advinhado quem era Miss Ross, teria levando em frente sua investigação, mas ficou nisso.
Maíra gravava em disquetes, ou, quando sentia que isso era perigoso, imprimia uma cópia para si dos e-mails codificados.
À noite, em seu apartamento, ela tentava decodificar as mensagens. O método para isso é antigo e remonta à Idade Média. Enquanto os europeus ainda achavam seguro o processo simples de trocar uma letra por sinal qualquer, os árabes já sabiam como decodificar códigos muitos mais complexos, baseando na probabilidade de ocorrência das letras. Esse método foi brilhantemente ilustrado por Edgar Alan Poe no conto O Escaravelho de Ouro e consiste em fazer uma tabela das letras mais raras, e portanto mais informativas, e as menos raras, e portanto mais redundantes, em uma língua. A seguir o padrão da língua é comparado com os padrões de repetições de sinais nos textos codificados.
Na língua portuguesa, por exemplo, as letras mais comuns são o A e o E. as mais raras são o X, o Y e o Z. Em um texto com grande quantidade de palavras, o sinal que for mais redundante, será, provavelmente, um A ou E.
Os e-mails usava como sinais as próprias letras do alfabeto. Maíra tentou simplesmente dobrar o alfabeto sobre si mesmo, de modo que o Z representasse o A, o X o B e assim por diante. Evidentemente isso não deu resultado. Não era provável que o sócio-majoritário da GWB usasse um código tão simples.
Uma outra tática interessante de decodificação, usada pelos ingleses para descobrir a chave da terrível máquina nazista Enigma, consistia em tentar colas, palavras que provavelmente constavam no texto. Descoberta uma palavra, o resto ficava fácil.
Sendo instruções para o mercado de ações, as mensagens provavelmente deveriam ter palavras como COMPRE, VENDA, AÇÕES. Maíra passou três dias tentando colas e quando conseguiu descobrir uma palavra, deu pulos de alegria. As palavras lhe revelaram nada menos que 11 signos. Daí em diante foi fácil.
Maíra descobriu que cada letras podia ser substituída aleatoriamente por três outras letras. Para tornar mais difícil a decodificação, havia signos que não representavam nada.
Ela escreveu a chave e gravou em um disquete junto com os e-mails de todos os concorrentes da GWB.
No dia seguinte, esperou todos os funcionários saírem e começou a redirecionar os e-mails, daquele dia, junto com as chaves, para as empresas concorrentes.
Ela sabia que o império do inimigo misterioso desmoronaria rapidamente com as informações que estava repassando.
Foi quando começou a ouvir tiros.

* * *

Maíra respirou fundo, tentando identificar, em meio à fumaceira de pólvora, seu próprio perfume adocicado.
De tempos em tempos, levantava e disparava uma rajada com um dos aparelhos que recebera das amazonas, uma pistola disfarçada em estojo de pó compato. Mas sabia que isso apenas atrasaria seus inimigos. Em pouco tempo eles cairiam sobre ela e uma bala acertaria seu crânio.
Então algo aconteceu. Por um momento a chuva de balas cessou, para continuar novamente em outra direção. Maíra esticou a cabeça por cima do arquivo e teve uma surpresa. A cavalaria tinha chegado! Najara avançava com a clava na mão, distribuindo bordoadas como um furacão.
Atrás dela, Rani, em um módulo anti-gravitacional, armava e desarmava seu arco tão rápido que era impossível acompanhar com os olhos.
Mais atrás, também em um módulo anti-gravitacional, Janaina emitia rajadas com seu cetro de rainha.
Os inimigos caiam como plantas no dia da colheita.
Em pouco tempo, Janaina pegava Maíra em seus braços, e desaparecia com ela no módulo anti-gravitacional.
Antes de partir, ela beijou sua filha:
- Bom trabalho, minha querida, bom trabalho.

* * *
Miss Ross avançou, titubeante, pelo largo salão. No final dele, havia uma mesa e uma poltrona de espaldar alto, virada para a janela.
Quinze metro depois, Miss Ross parou, ao pé da mesa.
- Então ela nos venceu, não é mesmo? Uma menina nos venceu... – disse a voz atrás da poltrona.
- O segredo do mercado de ações é justamente o segredo, senhor. Quando souberam como agíamos e quando souberam como estávamos implantando boatos, ficou impossível continuar. Tivemos de pedir falência.
- Isso significa prejuízo, não é mesmo?
- Sim, senhor.
- Tudo por causa daquela potranca?
- Isso mesmo, senhor.
- Sabe o que fazemos com pontrancas que não se deixam domar?
- O que, senhor?
A poltrona se virou, revelando um homem baixo, de orelhas grande, rosto de chimpanzé e chapéu de cowboy.
- Nós sacrificamos, Miss Ross. É isso que fazemos com potrancas que nos dão trabalho.
A mulher sentiu um esgar de morte. Sua garganta se fechou e tremores percorreram seu corpo. Suas pernas bambearam e ela caiu, estrebuchando.
O homenzinho ficou em pé, para olhar por cima da mesa, enquanto dizia, divertido:
- A vida é um rancho, Miss Ross. É o que dizemos lá no Texas!

3/19/2006



OS ANJOS
EPISÓDIO 4 – SETE HORAS

Eram sete horas da manhã.
Ele acordou com a mãe sacudindo-o e dizendo que ele se atrasaria para a escola.
Eram sete horas da manhã.

* * *

O homem tirou a venda e as trevas que enchiam seus olhos se transformaram em luz, mas isso não alegrou Cristina. Ela tentou falar, gritar por socorro, mas uma fita adesiva em sua boca só lhe permitia alguns gemidos.
Cristina estava sentada em uma cadeira de madeira, as mãos amarradas ao encosto.
Acostumando seus olhos à claridade, ela olhou à volta, tentando se situar. Percebeu que estavam em uma espécie de porão. Não havia janelas, apenas uma porta, logo à sua frente. O chão era de madeira envernizada, velha, mas em bom estado.
Um cheiro forte e decrépito tomava o ambiente.
Uma lâmpada incandescente, acima de sua cabeça, era a única iluminação.
Olhando para um dos lados do porão, ela viu seu raptor e teve um calafrio. Era um homem calvo, vestido de preto, com óculos escuros. Não tinha sombrancelhas e seus lábios eram muito finos e brancos, como se não corresse sangue em seu corpo. “Talvez ele esteja morto”, pensou. Mas ele estava vivo e sorria para ela um sorriso estranho, demoníaco.
Do outro lado, havia uma cama. No lugar do colchão, um estrado de faixas de borracha entrelhaçadas. Amarrada sobre a cama estava uma mulher loira, de cabelos anelados desalinhados e longos. Estava nua e sua pele estava branca como se há muito tempo não visse o sol.
Ao pé da cama, presa a uma coleira e uma corrente fixada na parede, estava outra mulher, de quatro. Tinha traços orientais e cabelos pretos muito curtos, mas cortados por um cabeleireiro inábil. Também estava nua e sua pele era ainda mais branca que a da outra.
- Seja bem vinda à sua nova casa. – disse o homem de preto, e seu sorriso se tornou ainda mais doentio.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele colocou as calças com os olhos fechados e quase dormiu de novo enquanto calçava as meias.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos ficou alguns segundos estático, parado com o papel na mão: VOCÊ NÃO SABE ONDE ESTÁ A SUA MULHER.
Suas mãos crisparam contra o papel, amassando-o e transformando-o em uma bolinha. Então jogou-o no chão e se afastou dele como se estivesse contaminado. Foi andando de costas, na direção da porta, as lágrimas escorrendo de seu rosto.
Quando chegou ao quintal, alçou vôo, gritando como um louco. Ficou lá em cima, rodopiando entre as nuvens e gritando.
Depois começou a voar em desespero por todos os locais, rastreando os sons na tentativa de encontrar sua esposa, até perceber que isso era inútil.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele usou o tato para amarrar o cadarço dos sapatos enquanto a mãe se despedia dele e saía pela porta.
Eram sete horas da manhã.
* * *
O homem parou de sorrir e olhou para as duas mulheres nuas.
- Deixe-me apresentá-la a suas novas colegas. Vocês passarão muito tempo juntas. São as minhas cachorrinhas, e você logo será também.
Ele se aproximou das mulheres e, abaixando o tronco, acariciou a cabeça da mulher no chão. Ela fez-lhe festas e lambeu sua mão.
- Esta é Sereia. As pessoas do interior gostam de batizar seus cachorros com nomes marinhos como forma de prevenir contra a hidrofobia. Eu gosto disso, acho poético, não é mesmo, Sereia?
A mulher respondeu com um som que parecia um latido.
- Eu capturei Sereia há cinco anos e levei mais de dois anos para domesticá-la. É um trabalho lento, de condicionamento. Demorado, mas compensa. É preciso muito cuidado, inclusive com a saúde. Devo compensar a falta de sol com vitaminas, mas isso não impede a brancura da pele. Seria, de fato, um inconveniente, se eu não gostasse assim.
Ele ficou novamente ereto, sentou no estrado da cama e tocou na mulher que estava amarrada. Ela afastou a perna com repugnância, como se tivesse sido tocada por uma cobra.
- E esta é Pérola. Eu há capturei há um ano e ela está em treinamento. Ela fica amarrada o tempo todo, mas eu a solto uma vez ao dia para que ela se acostume a andar de quatro e, ao mesmo tempo, se exercite. Pérola é um pouco arredia e seu treinamento vai durar muito. Talvez eu me canse dela antes disso e faça com ela o que fiz com as outras. Você pode sentir o cheiro? Pode ouvir os ossos estalando? Elas estão aí, embaixo de você. Aquelas que me desobedeceram...
E o homem de preto olhou para o chão debaixo da cadeira.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele lavava o rosto quando ouviu um guincho fino, como de borracha sendo arrastada por uma superfície sólida e áspera. Depois o grito de uma mulher e o som seco de ossos se quebrando. A voz de sua mãe.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos aterrissou no quintal de sua casa e entrou pela porta da frente, que havia ficado aberta. Penetrou na sala e deparou-se com uma foto de Cristina acima da televisão. Aproximou-se e tocou-a com o dedo, cuidadosamente, como se lidasse com algo extremamente frágil, capaz de quebrar ao menor toque.
Depois, foi para a cozinha e pegou o papel amassado no chão. Abriu-o lentamente, tateando-o, tentando encontrar alguma pista tátil. Todos os seus sentidos concentravam-se no papel, à procura de algo e foi o seu nariz que encontrou algo estranho. O cheiro. Que cheiro era esse?
Marco levou o papel ao nariz, aspirou profundamente e em seguida afastou o papel, enojado. Fedor.
Que tipo de fedor? Lixo? Fezes?
Cortume.
Era isso. Cortume. Onde já Marcos já sentira esse cheiro antes? Procurou na memória.
Sua mãe. Ônibus. Fedor. Cortume.
Um dia, ele tinha oito anos, estavam no ônibus. Ele sentiu o fedor e tapou o nariz. Sua mãe lhe explicou que era o cheiro do cortume e que aquela era a rua do Cortume.
Rua do Cortume.
Marcos procurou um mapa. Rua do Cortume. Lá estava ela. No bairro do Cortume.

* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele saiu de casa correndo e atravessou a rua, o rosto molhado de água e lágrimas.
Eram sete horas da manhã.

* * *
O homem de preto se deitou sobre a mulher loira e violentou-a. Ela tentava gritar, mas era impedida por uma mordaça de couro que cobria sua boca e seu queixo.
Quando terminou, ele se levantou e deixou a mulher chorando sobre a cama. Então andou até a prateleira do outro lado do porão e pegou uma faca.
- Você deve estar se perguntando por que ainda não fiz nada com você. – disse ele, aproximando-se de Cristina. Sabe por quê? Porque quero primeiro capturar seu marido. Quero que ele veja tudo que vou fazer com você.
Os olhos de Cristina se arregalaram. Ele aproximou o faca de sua blusa e usou-a para arrancar, uma a um, os botões de sua blusa. Depois cortou os sutiã e os seios saltaram. Então Cristina sentiu o gume frio da faca passeando por seus seios e roçando em seus mamilos.
-Ele é uma pessoa especial e por isso terei um prazer especial em captura-lo. Oh, sim! Eu me esqueci! Você ainda não sabe sobre os dons de seu marido... você ainda não sabe que ele pode ouvir mais e melhor que qualquer pessoa, que pode ver como uma águia, pode sentir texturas e sabores melhor que você poderia imaginar. E ele descobriu recentemente que pode voar. Como sei disso? Vamos dizer que também tenho minhas habilidades. Ao focar uma pessoa, eu posso sentir um pouco de seu passado, presente e futuro. Eu estava na fila do banco quando houve o assalto e sei que foi seu marido que impediu o assalto. Entenda, eu só precisei juntar as peças...seu marido é um escolhido, um homem com habilidades especiais... como eu... e, o que é melhor, tem uma linda esposa...
O homem de preto levantou a faca e passou-a pela face de Cristina.
- Você deve estar pensando: se meu marido tem mesmo essas habilidades, ele irá me salvar. Vai descobrir onde estou e vai me salvar como o príncipe encantado que salva a princesa prisioneira do dragão. Mas eu tenho más notícias. Isto não é um conto de fadas... e o dragão é mais esperto que o príncipe. Eu posso sentir ele chegar. E posso me antecipar a cada ação dele. Aliás, posso senti-lo agora. Ele está chegando. Está caindo em minha armadilha!
* * *
Eram sete horas da manhã.
Várias pessoas se amontoavam ao redor do corpo. Uma mancha rubra se alastrava pelo asfalto. Ela ainda respirava.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos percorreu voando o caminho entre sua casa e a Rua do Cortume e ficou lá em cima, rastreando as casas até ouvir a voz de sua esposa gritando por socorro.
Era uma casa velha, isolada entre o cortume e um terreno baldio.
Marcos passou por uma varanda e aproximou-se da porta, pronto para arrombá-la, quando percebeu que ela estava aberta.
A porta abriu com um rangido e Marcos ouviu um murmúrio em sua cabeça: “Cuidado”.
Deu um primeiro passo e a madeira velha gemeu sob os seus pés. A voz de sua esposa, chamando por socorro continuava forte à sua frente. Um novo passo e a madeira tornou a gemer. Estava em uma sala ampla. A voz de sua esposa vinha de uma mesa, mas não havia ninguém lá.
Olhando à sua volta, ele se aproximou da mesa. Era um gravador.
Marcos apertou o stop e os pedidos de socorro cessaram. Então girou ao redor de si mesmo, os ouvidos atentos para qualquer barulho.
Um homem falando.
Onde?
Abaixo de seus pés.
A casa devia ter um porão. Marcos andou por ela, procurando a entrada. Encontrou-a na cozinha: um estreito corredor com uma escada e, no final dela, uma porta. “Não vá, não vá”, dizia a voz em seu ouvido, mas ele desceu. A madeira rangia e estalava sob seus pés. Seus ouvidos estavam atentos. O homem tinha parado de falar. Onde estaria?
Marcou abriu a porta e entrou. Viu sua esposa amarrada e amordaçada em uma cadeira e foi a última coisa que viu. Sentiu o impacto de algo duro na testa... depois dor... e então ficou tudo escuro.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele tinha certeza de que ela iria sobreviver e afagava seus cabelos manchados de escarlate, mas ela deu seu último suspiro.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos acordou desnorteado. Onde estava? Por que tudo estava tão escuro? Aos poucos, a memória foi voltando e ele percebeu que estava caído no chão. A visão demorou mais a voltar e a primeira coisa que ele viu foi o rosto de um homem calvo de óculos escuros e sorriso sarcástico.
- Não pensei que fosse tão fácil. Achava que ia me divertir um pouquinho... vamos, levante-se, seu idiota, levante-se!
Marcos se jogou sobre ele, mas o homem de preto desviou.
Com muito esforço, Marcos se levantou. Seu olhar estava embaçado, mas mesmo assim ele voou sobre o homem, que desviou no momento exato e, pegando-o pelo pé, jogou-o contra a parede.
- Vamos, me ataque! Salve sua linda esposa! Venha, seu idiota!
Marcos se levantou novamente e ficou frente a frente com seu antagonista. Tentou pegá-lo de surpresa com um soco, mas o homem desviou com facilidade, até que seu rosto foi tomado por uma expressão de dor. Ele podia antecipar cada movimento de Marcos, mas não podia prever o chute que Cristina lhe daria entre as pernas.
Marcos aproveitou o momentâneo desnorteamento do homem de preto e desferiu-lhe um golpe na cabeça. Com o impacto, ele caiu de costas no chão e Marcos caiu sobre ele, desferindo socos. Os óculos escuros quebraram e revelaram olhos azuis muito claros.
Marcos pegou-o pelas orelhas e bateu sua nuca no chão até que ele parasse de se mexer. Então se levantou e começou a chutar o homem entre as pernas e nas costelas.
Quando se cansou, foi até a esposa, ajoelhou-se, tirou a mordaça de sua boca, e abraçou-a, chorando. Choraram os dois juntos, beijando-se entre lágrimas.
Então ele se levantou e desamarrou-a. Em seguida foi até a mulher nua na cama e também a libertou. Ela olhou para as próprias mãos, não acreditando que estava livre.
A mulher no chão foi libertada da coleira, mas não se levantou. Ao contrário. Foi de quatro até o homem e preto e cheirou-o.
- Ele está...? – perguntou Cristina.
- Não. Apesar de merecer morrer, ele vai sobreviver. Agora vamos embora.
Cristina apontou para as mulheres.
- E elas?
- Vamos chamar as autoridades. Elas precisam de mais ajuda do que podemos dar.
Foram andando até a varanda. Depois Marcos levou-a voando para casa.

3/13/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 3 - PESADELO


Marcos dormia. Em seu sonho, ele era criança e tinha amigos invisíveis. Eles falavam com ele, aconselhando-o. Falavam de seus sentidos e de como ele não eram bem usados. Poderiam ser muito melhores, se ele aprendesse. Poderia ouvir melhor, ver melhor, sentir sabores que jamais havia imaginado e sentir cheiros tão frágeis que um cachorro se enganaria com eles.
Eles lhe disseram que poderia voar também... e ele voou. Seu corpo elevou-se acima do solo, voando acima das casas.
Em seu sonho, ele se lembrou de sua mãe lhe contando uma história. Uma parábola da Bíblia.
“Um senhor muito rico ia viajar”, dizia ela. “Ele chamou três de seus servos. Para o primeiro, entregou cinco talentos. Para o segundo, dois e para o último, um.
Depois de muito tempo, ele retornou e mandou chamar os servos. O primeiro chegou e disse: Senhor, investi os cinco talentos que me confiaste e com eles lucrei mais cinco. E entregou o dinheiro, mas o senhor devolveu a ele dizendo: Foste um bom servo e tens direito a teus talentos.
Então o senhor chamou o outro servo. Senhor, disse o servo, investi os dois talentos que me entregaste e ganhei mais dois. Mais uma vez, o senhor entregou todo o dinheiro ao servo, elogiando-o.
Finalmente, entrou o último servo, trazendo na mão apenas um talento. Senhor, disse o servo, fiquei com medo de ti e enterrei o talento que me deste. Aqui está.
O senhor o amaldiçoou: Eu te dei o talento para que o multiplicasse, não para que o enterrasse. Servo mal. Ficarás preso onde haja choro e ranger de dentes.”
Marcos se lembrava de sua mãe lhe contando essa história. ela estava sentada à beira da cama, falando com sua voz calma e tranqüilizadora... e no instante seguinte estava morta!
***
- Querido, o que foi?
Marcos olhou à volta, tentando descobrir onde estava. Por um instante pareceu-lhe que estava em seu quarto de infância e só percebeu o engano quando viu Cristina ao seu lado. Apesar do ar-condicionado, ele suava e sua testa estava molhada.
- O que aconteceu? Você deu um grito...
- Nada. Um pesadelo, só isso.
De manhã, enquanto tomavam café, Cristina perguntou se estava tudo bem.
- Tudo ótimo. Foi só um pesadelo...
- Bem, talvez eu tenha uma razão para deixa-lo feliz. Você chegou tão tarde ontem e depois pareceu tão interessado nas notícias sobre o fim do seqüestro do garoto, que acabei não contando...
- Contando o quê?
- Uma novidade.
- Eu sei que é uma novidade. Apenas me conte o que é.
- Eu... bem... eu estou grávida!
- Grávida?
- As minhas regras estavam atrasadas uma semana e você sabe o quanto o meu ciclo é regular. Então eu fiz um exame e deu positivo...
Marcos ficou olhando para ela, perplexo.
- Grávida...
Por alguma razão, o bilhete que recebera no dia anterior veio à sua mente: EU SEI TUDO.
- E então, não está feliz?
- Claro, estou muito feliz!
Levantou e foi beija-la. Depois ajoelhou-se e beijou a barriga da esposa.
Quando saía de casa, lembrou-se que não havia olhado a caixa de correspondência no dia anterior. Abriu a caixa e lá dentro havia contas para pagar, catálogos e uma estranha carta, sem remetente e sem carimbo do correio. Marcos estava já no ônibus quando abriu a carta e suas mãos ficaram trêmulas. No papel havia apenas uma frase: EU SEI ONDE VOCÊ MORA.
***
Maria Rita estava molhando uma toalha para colocar ao redor do pescoço quando começou a ouvir passos. Sua visão estava turva em decorrência da fumaça. Ela estava sufocada, tossindo e mal podia manter-se de pé, mas mesmo assim conseguiu distinguir um homem se aproximando dela.
- Estou aqui para salva-la. – disse o desconhecido e sua voz tinha o timbre da esperança.
- Não há como. Estamos mortos. – a voz estava embaçada pela fumaça e o esforço de falar parecia inútil. Os andares de baixo estão pegando fogo. Não há como subir. O fogo tomou as escadas. Só nos resta pular da janela, mas são dez andares...
O homem pegou em seu ombro e tranqüilizou-a:
- Não se preocupe. Você vai ser salva.
Ele pegou-a pela mão e saiu com ela do banheiro. A fumaça subia, tomando conta de tudo e tornando impossível avançar sem tropeçar ou bater nos móveis. As instalações elétricas começavam a pipocar em estalos prateados. A encanação de gás explodiu e a cozinha foi tomada pelo fogo.
Maria Rita recuou, aterrorizada.
-Vamos, se ficarmos mais tempo, estaremos mortos.
A mulher deixou-se arrastar até a sacada. Ar, ar puro. Ela respirou profundamente, aproveitando seus últimos momentos de vida.
- Segure-se em mim. – pediu o homem. Vamos sair daqui.
- Não, eu não vou pular. Prefiro morrer queimada.
Histérica, Maria Rita fechou os olhos, sentou no chão da sacada e começou a chutar a perna do desconhecido.
- Vá embora! Vai embora! Eu não vou pular!
De repente seus pés não alcançaram mais nada. Ela abriu os olhos, lutando contra as lágrimas e a ardência, procurando o homem, mas só o encontrou quando olhou para cima. Ele estava flutuando no ar, como se suspenso por linhas invisíveis e mágicas.
- Você não vai cair.- disse ele.
Ela se levantou chorando – e as lágrimas já não eram mais apenas por causa da fumaça – e se agarrou a ele. Os dois flutuaram em minutos seus pés tocavam o chão da rua. Muitas pessoas a cercaram, tentando ajuda-la. Depois de algum tempo ela olhou à volta, mas seu salvador havia desaparecido em meio à multidão.

***
Marcos chegou em casa exultante naquela noite. Ele pensava seriamente em falar para a esposa como havia salvo a vida de uma mulher em um incêndio, mas não havia ninguém em casa.
A bolsa de Cristina estava sobre o sofá, mas a casa estava silenciosa. Preocupado, ele andou até a cozinha. Havia um papel branco dobrado sobre a mesa. Marcos abriu o papel. Havia apenas uma frase nele:

VOCÊ NÃO SABE ONDE ELA ESTÁ.

3/05/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 2 – UM SONHO DE VOAR

Ele sonhou que estava voando. Seu corpo deslizava suavemente pelas partículas de ar, quebrando barreira, ignorando a gravidade. Atravessava nuvens e comungava com as estrelas, respirando liberdade...
Marcos acordou. Não abriu os olhos, mas advinhou que ainda era noite. Sentia frio, mas, curiosamente, o frio vinha de baixo, não de cima. Era como se a cama tivesse desaparecido. Lutou entre dois opostos: a vontade de continuar dormindo e a necessidade de abrir os olhos para puxar a coberta. Finalmente, abriu os olhos e espantou-se com a proximidade do teto. Era como se a parede tivesse encurtado. Teve, então, a idéia de olhar para baixo e descobriu o que realmente estava acontecendo: ele estava flutuando quase meio metro acima do colchão. O lençol se elevara com ele, mas continuava cobrindo Cristina.
Marcos entrou em desespero, mas ouviu uma voz sussurrando em seu ouvido, acalmando-o.
Ele desejou estar de volta à cama e, como se respondesse a um comando secreto, seu corpo foi descendo até ser depositado calmamente no chão.
***
No banco, no dia seguinte, Marcos deparou-se com os colegas lendo as manchetes do Gazeta Popular. Pediu para dar uma e leu, enquanto um colega dizia “Só faltava essa!”.
LADRÕES DORMEM DURANTE ASSALTO
Dois menores, que assaltavam e tentavam violentar uma mulher na quinta-feira à noite, no bairro de São Francisco, dormiram enquanto praticavam o crime. A vítima também dormiu. Os dorminhocos foram encontrados ontem de manhã pela polícia, depois de denúncias de vizinhos. Entrevistados, os acusados disseram que não sabiam o que havia acontecido. É, pelo jeito o assalto estava tão monótono que deu sono...
- Era só o que faltava, hein? Ladrão dormindo no serviço. – disse um colega.
- Olha só quem fala! Até parece que você não dorme no banheiro. – lembrou outro.
- Aquilo não é sono, é meditação.
Nisso o vigilante se aproximou.
- Seu Marcos, deixaram um bilhete para o senhor.
E entregou um pedaço de papel dobrado e grampeado, com seu nome em um dos lados.
- Como assim? Quem deixou?
- Não sei. Devem ter jogado por debaixo da porta... tem seu nome aí.
Marcos abriu o grampo. Havia apenas uma frase, em letras maiúsculas:
EU SEI TUDO.
Marcos dobrou o papel e colocou-o no bolso, olhando à volta para se certificar de que ninguém mais havia lido seu conteúdo.
- O que foi? – perguntou um amigo.
- Nada, trote.
- Sei, viu a história do garoto que foi seqüestrado?
- Garoto seqüestrado?
- Onde você estava, na lua?
- Que garoto?
- Seqüestraram o filho de um comerciante. O garoto tem cinco anos. Estão pedindo três milhões. O pai diz que não tem esse dinheiro. Eles cortaram um dedo do garoto e mandaram para o pai...
- E a polícia?
- Nenhuma pista. Agora vamos para o trabalho que o gerente está chamando...
***
À tarde, quando saiu do trabalho, Marcos pegou um ônibus que não pegava normalmente. Ele sabia que, com isso, ia dar uma volta muito maior. Mas não se importava. Era como se vozes o influenciassem em sua decisão.
Quando chegou a um terminal, pegou outro ônibus e foi à janela, atento aos sons que chegavam da rua. Era uma miríade de sons variados que se misturavam num todo caótico, que Marcos separava em pequenas partes e as analisava uma a uma. Ele ouviu cachorros latindo, ouviu o choro de bebês, ouviu um casal brigando por causa de um controle remoto, ouviu um fusca velho tossindo e escarrando, incapaz de sair do lugar.
De vez em quando ele ouvia uma música agradável e concentrava a atenção nela, mas depois voltava a rastrear os sons, como se procurasse a sintonia no dial de um rádio.
Já estava muito longe de casa e do banco quando ouviu algo que chamou sua atenção. Desceu na parada seguinte. Ia concentrado, com medo de perder a voz na qual estava concentrado.
Finalmente parou na frente de uma casa que parecia abandonada. Mas não estava, como atestava o cadeado novo na grade do portão. Era uma casa ampla, de classe média, com telhado de telhas de barro.
Marcos olhou para o lado, para se certificar de que não havia ninguém na rua, e então se elevou no ar. Pousou sobre o telhado, com cuidado para não fazer barulho. Levantou uma das telhas e olhou para baixo. Era um quarto pequeno, com a porta trancada. Tinha um garoto ali, sentado em um cama com os braços enlaçados nas pernas dobradas. O garoto chorava e tremia.
Marcos recolocou a telha no lugar e se elevou no céu, descendo novamente em outra rua, ao lado de um orelhão. Fez uma ligação, utilizando o último crédito de seu cartão, e voltou a a se elevar no céu. Quando pousou novamente, estava sobre o telhado da casa. Procurou a telha que havia retirado antes e afastou-a. depois outra e outra, até abrir um espaço suficiente para poder entrar.
O garoto ouviu o barulho e olhou para cima. Marcou levou o dedo médio aos lábios, em sinal de silencio, e piscou para ele.
- Vou tira-lo daqui. – disse, pousando ao lado da cama.
Os olhos do garoto brilharam.
- Meu pai mandou você?
- Eu sei quem foi. Minha avó. Ele apareceu num sonho e disse que um anjo ia me salvar.
- Silêncio agora.
Marcos pegou o garoto no colo e começou a flutuar no ar, na direção do buraco no teto. Nisso ouviu o barulho de um trinco e o rangido da porta.
- Ei, o que está acontecendo?
O homem sacou uma arma e começou a atirar, mas Marcos e o menino já tinham desaparecido. Ouvia-se sirenes.
***
À noite, Marcos assistia o noticiário com a esposa. A principal notícia era a libertação do garoto.
REPÓRTER: O garoto foi liberado depois de 40 dias de cativeiro. O seqüestro teve momentos dramáticos, como quando os pais receberam uma caixa com o dedo do menino, mas acabou bem. O cativeiro foi descoberto graças a uma denúncia anônima, mas quando a polícia chegou ao local, Rodrigo já havia fugido e estava a duas quadras de distância. Estamos aqui com o delegado responsável pelo caso. Delegado, como o menino conseguiu fugir?
DELEGADO: Realmente não sabemos. Aparentemente ele fugiu pelo telhado, mas a parede era muito alta e não havia nada para ele subir. É um mistério...
REPÓRTER: O que o garoto diz?
DELEGADO: Ele afirma que foi salvo por um anjo enviado pela avó. Essas fantasias infantis são comuns em casos de stress como esse. A pessoa cria uma fantasia para fugir da realidade.
REPÓRTER: Rodrigo passou por uma avaliação psicológica?
DELEGADO: Sim, e ele estava calmo, apesar do que aconteceu. Achamos que a fantasia do anjo e a lembrança da avó morta o ajudaram a lidar com a situação.
REPÓRTER: Obrigado, delegado. Voltamos agora aos nossos estúdios.
ÂNCORA: É, parece que temos um anjo cuidando da cidade....