4/30/2006



OS ANJOS
EPISÓDIO 7 – A MULHER DE CABELOS DOURADOS

“Tem gente que canta procurando Deus
Tem gente que recebe Deus quando canta”
Cazuza

Eu estava perseguindo três ladrões. Eles haviam surrupiado a bolsa de uma senhora idosa e, como ela resistia, a teriam espancado até a morte se eu não aparecesse. Com o tempo descobri que ver alguém descer do céu, em meio às sombras, pode ser uma visão aterradora o bastante para fazer correr uma trinca de criminosos e foi isso que aconteceu naquela noite.
O ato de voar era, inevitavelmente, ligado a algo sobrenatural e, se para alguns eu era um anjo, para outros eu, vestindo um capote, o rosto encoberto por um capuz, parecia-me mais com um demônio.
Os assaltante correram desajeitadamente, ao mesmo tempo que jogavam para trás a bolsa, como se ela queimasse em suas mãos.
Eu acompanhava dos céus sua fuga inútil, embora estivesse preocupado com a possibilidade de não conseguir pegar os três. Quando eles entraram em um beco, eu me senti tranqüilizado, pois agora eles dificilmente me escapariam. Além disso, naquele local estreito, os três não poderiam me atacar ao mesmo tempo. Era o lugar ideal para abordá-los, mas quando me aproximei, vi algo fantástico: eles estavam parados, como que congelados. Do outro lado do beco, havia uma mulher cantando.
Tinha longos cabelos cacheados de cor dourada e eles eram como conchas deslizando num mar de ondas. Os olhos eram grandes, profundos, ressaltados por sobrancelhas grossas. Os lábios, vermelhos e grandes, moviam-se e deles saiam sons que eram como o bater de ondas nas rochas ou o murmúrio instável do rio enchendo e vazando. Sua voz tinha o gosto reconfortante da água de poço e ao mesmo tempo era arenosa como a água do mar e tinha o aroma suave do orvalho sobre as plantas em uma manhã na floresta. Suas canções falavam de barcos perdidos, de mães chorosas, da lágrima de uma menina, da saliva de duas mulheres se beijando.
De repente, percebi que estava sendo hipnotizado e despertei, assustado. Eu quase despencara de cima do prédio. Olhei para baixo e vi os três homens chorando como se estivessem em seus próprios enterros. Eles ficariam ali por horas ou dias, como carpideiras de si mesmos.
Virei o rosto para o outro lado e percebi que a mulher havia desaparecido. Contornei o prédio e sobrevoei a rua, procurando a moça de cabelos cacheados, mas ela havia desaparecido.

* * *
No dia seguinte, após o trabalho, fui à biblioteca. Pedi os jornais do último mês, todos os três: a Gazeta Popular, A Folha de Santa e Helena e O Tribuno.
Examinei atentamente as notícias, concentrando-me nas páginas policiais. Havia alguma coisa sobre O Anjo e seu sorri ao ler isso, entre envergonhado e orgulhoso.
Fora isso, havia uma matéria sobre como haviam aumentado os roubos nas lojas de departamentos. Nem mesmo o sistema de segurança estava conseguindo diminuir os furtos, pois o bandido, misteriosamente, retirava as etiquetas das roupas e objetos e simplesmente saía com eles. Havia uma declaração de um gerente segundo o qual era impossível retirar as etiquetas sem o equipamento específico, que só existia nos caixas. Era como se os roubos estivessem sendo feitos por um fantasma.
Mas não era isso que eu estava procurando. Depois de muita procura, achei uma matéria sobre dois ladrões que haviam dormido enquanto tentavam violentar uma vítima.
Era essa a pista!
Encontrei mais três matérias sobre ladrões que haviam sido presos em atitudes estranhas. Um deles estava rindo, o outro catatônico, o outro chorava. Um marido que espancava a esposa foi encontrado tremendo de medo.
Eu a ouvira e sabia que ela podia provocar reações assim em qualquer um que a ouvisse cantar. Não havia relatos da mulher porque todos estavam perturbados demais para identificar quem quer que fosse, mas uma mulher que morava perto de onde acontecera um dos fatos declarou que ouvira uma estranha canção.
Havia algo em comum em todos os casos: as vítimas eram sempre mulheres!

* * *
As informações colhidas na biblioteca foram bastante úteis. A partir daquele dia, em minhas rondas noturnas, passei a dar mais atenção para crimes contra mulheres.
Foi no terceiro dia que a encontrei.
Uma mulher saíra gritando de um cortiço e um homem corria atrás dela, uma faca na mão direita. A mulher caiu e ia ser esfaqueada quando a cantora de cabelos dourados apareceu. Eu estava alto demais para ouvir detalhes da música que cantava, mas pude ver quando o homem largou a faca, levou a mão ao rosto, como se estivesse repleto de vergonha e caiu no chão, tremendo.
A sereia afastou-se, dobrando uma esquina e me encontrou. Ela assustou-se e abriu a boca para iniciar uma canção.
- Não, por favor. – pedi. Não sou inimigo.
Ela não cantou, mas olhou desconfiada para mim, a boca entreaberta como quem segura um revólver destravado.
- Sou como você. – disse Marcos. Sou um anjo.

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