4/30/2006



OS ANJOS
EPISÓDIO 7 – A MULHER DE CABELOS DOURADOS

“Tem gente que canta procurando Deus
Tem gente que recebe Deus quando canta”
Cazuza

Eu estava perseguindo três ladrões. Eles haviam surrupiado a bolsa de uma senhora idosa e, como ela resistia, a teriam espancado até a morte se eu não aparecesse. Com o tempo descobri que ver alguém descer do céu, em meio às sombras, pode ser uma visão aterradora o bastante para fazer correr uma trinca de criminosos e foi isso que aconteceu naquela noite.
O ato de voar era, inevitavelmente, ligado a algo sobrenatural e, se para alguns eu era um anjo, para outros eu, vestindo um capote, o rosto encoberto por um capuz, parecia-me mais com um demônio.
Os assaltante correram desajeitadamente, ao mesmo tempo que jogavam para trás a bolsa, como se ela queimasse em suas mãos.
Eu acompanhava dos céus sua fuga inútil, embora estivesse preocupado com a possibilidade de não conseguir pegar os três. Quando eles entraram em um beco, eu me senti tranqüilizado, pois agora eles dificilmente me escapariam. Além disso, naquele local estreito, os três não poderiam me atacar ao mesmo tempo. Era o lugar ideal para abordá-los, mas quando me aproximei, vi algo fantástico: eles estavam parados, como que congelados. Do outro lado do beco, havia uma mulher cantando.
Tinha longos cabelos cacheados de cor dourada e eles eram como conchas deslizando num mar de ondas. Os olhos eram grandes, profundos, ressaltados por sobrancelhas grossas. Os lábios, vermelhos e grandes, moviam-se e deles saiam sons que eram como o bater de ondas nas rochas ou o murmúrio instável do rio enchendo e vazando. Sua voz tinha o gosto reconfortante da água de poço e ao mesmo tempo era arenosa como a água do mar e tinha o aroma suave do orvalho sobre as plantas em uma manhã na floresta. Suas canções falavam de barcos perdidos, de mães chorosas, da lágrima de uma menina, da saliva de duas mulheres se beijando.
De repente, percebi que estava sendo hipnotizado e despertei, assustado. Eu quase despencara de cima do prédio. Olhei para baixo e vi os três homens chorando como se estivessem em seus próprios enterros. Eles ficariam ali por horas ou dias, como carpideiras de si mesmos.
Virei o rosto para o outro lado e percebi que a mulher havia desaparecido. Contornei o prédio e sobrevoei a rua, procurando a moça de cabelos cacheados, mas ela havia desaparecido.

* * *
No dia seguinte, após o trabalho, fui à biblioteca. Pedi os jornais do último mês, todos os três: a Gazeta Popular, A Folha de Santa e Helena e O Tribuno.
Examinei atentamente as notícias, concentrando-me nas páginas policiais. Havia alguma coisa sobre O Anjo e seu sorri ao ler isso, entre envergonhado e orgulhoso.
Fora isso, havia uma matéria sobre como haviam aumentado os roubos nas lojas de departamentos. Nem mesmo o sistema de segurança estava conseguindo diminuir os furtos, pois o bandido, misteriosamente, retirava as etiquetas das roupas e objetos e simplesmente saía com eles. Havia uma declaração de um gerente segundo o qual era impossível retirar as etiquetas sem o equipamento específico, que só existia nos caixas. Era como se os roubos estivessem sendo feitos por um fantasma.
Mas não era isso que eu estava procurando. Depois de muita procura, achei uma matéria sobre dois ladrões que haviam dormido enquanto tentavam violentar uma vítima.
Era essa a pista!
Encontrei mais três matérias sobre ladrões que haviam sido presos em atitudes estranhas. Um deles estava rindo, o outro catatônico, o outro chorava. Um marido que espancava a esposa foi encontrado tremendo de medo.
Eu a ouvira e sabia que ela podia provocar reações assim em qualquer um que a ouvisse cantar. Não havia relatos da mulher porque todos estavam perturbados demais para identificar quem quer que fosse, mas uma mulher que morava perto de onde acontecera um dos fatos declarou que ouvira uma estranha canção.
Havia algo em comum em todos os casos: as vítimas eram sempre mulheres!

* * *
As informações colhidas na biblioteca foram bastante úteis. A partir daquele dia, em minhas rondas noturnas, passei a dar mais atenção para crimes contra mulheres.
Foi no terceiro dia que a encontrei.
Uma mulher saíra gritando de um cortiço e um homem corria atrás dela, uma faca na mão direita. A mulher caiu e ia ser esfaqueada quando a cantora de cabelos dourados apareceu. Eu estava alto demais para ouvir detalhes da música que cantava, mas pude ver quando o homem largou a faca, levou a mão ao rosto, como se estivesse repleto de vergonha e caiu no chão, tremendo.
A sereia afastou-se, dobrando uma esquina e me encontrou. Ela assustou-se e abriu a boca para iniciar uma canção.
- Não, por favor. – pedi. Não sou inimigo.
Ela não cantou, mas olhou desconfiada para mim, a boca entreaberta como quem segura um revólver destravado.
- Sou como você. – disse Marcos. Sou um anjo.

4/22/2006


MAÍRA – A GUERREIRA AMAZONA
Episódio 3 – O diário de Sir Burton


Maíra percorria em silêncio os corredores do palácio. Provavelmente nunca se acostumaria com a grandiosidade do local.
Algumas amazonas passavam por ela e a cumprimentavam. Além de ser filha adotiva da rainha, a garota ganhara o respeito das outras graças ao sucesso de sua última missão.
Os corredores pareciam formar um labirinto no qual qualquer um poderia se perder. E, a cada vez que os percorria, Maíra encontrava salas que não conhecia. Dessa vez, não foi diferente. Maíra deparou-se com o que parecia ser uma biblioteca. Livros, em sua maioria muito antigos, avolumavam-se nas paredes laterais.
A garota aproximou-se de uma estante e retirou um livro a esmo. Era um pequeno volume encadernado em couro. Tinha o formato estreito, como se tivesse sido feito para ser colocado no bolso.
Maíra abriu e viu que se tratava de uma espécie de diário, escrito a lápis.
- Olá, menina.
Maíra pulou de susto. Era sua mãe adotiva, a rainha.
- Não, não se assuste. Está tudo bem. Você, sendo minha filha, tem direito de conhecer alguns segredos. Lembra-se que uma vez você me perguntou se algum homem branco já havia entrado na cidade das amazonas?
- Sim. – recordou Maíra.
- Um único homem branco penetrou por nossos portões. Sua história está contada nesse diário.
- Posso ler?
- Pode. Fique à vontade.
Maíra sentou-se em uma cadeira, apoiou o livro na mesa de mármore e mergulhou na leitura.


DIÁRIO DE SIR. RICHARD BURTON

A lenda das amazonas é uma das mais antigas do mundo. Remonta aos antigos gregos, mas permaneceu por séculos como fruto da imaginação prodigiosa dos helênicos, até ser renovada pela descoberta do Novo Mundo. Um navegador chamado Orelana afirmou ser sido atacado por mulheres guerreiras enquanto navegava um rio que, por isso, chamou-se Amazonas.
Agora, séculos depois, um homem afirma ter informações concretas sobre o paradeiro das amazonas. Seu nome é Lopez e ele garante que a tribo de mulheres guerreiras se encontra no extremo norte do país, na província do Grão Pará, mais especificamente na Serra do Tumucumaque.
Baseado nas informações que lhe foram fornecidas pelos índios, ele pretende me levar até lá. Saímos do Rio de Janeiro há alguns dias. É possível que Lopez seja apenas um trambiqueiro, mas conhecer a Amazônia vale o esforço e pode me fazer esquecer o enfadonho serviço de cônsul britânico no Brasil. Depois de ter percorrido a África em busca da nascente do Nilo, meu sangue parece ter sido infectado com a doença da aventura...

* * *
Aportamos em Belém do Grão Pará. Ficamos em um hotel próximo ao porto e conhecemos um local pitoresco que os habitantes locais chamam de Ver-o-peso. São barracas e mais barracas de comidas típicas, peixes, frutas e verduras. Experimento o suco de uma fruta chamada cupuaçu e uma comida pesada que eles chamam de maniçoba. É uma espécie de feijoada, mas tem folhagem verde-escura no lugar do feijão. A mulher da barraca diz que a folhagem é retirada da mandioca e que leva uma semana cozinhando para fazer evaporar o veneno. O composto tem aspecto desagradável de excremento, mas o gosto é bom.
Uma outra senhora me vende uma pomada feita de gordura de boto, um golfinho local e me garante que tem efeito milagroso sobre a vida sexual de quem a usa. Se soubesse que traduzi o Kama Sutra para o inglês talvez pensasse duas vezes antes de me vender esse tipo de coisa.

* * *
De Belém, pegamos um navio para Santana, no norte do Grão- Pará. É um porto pequeno, mas de boa profundidade. Apesar disso, tem pouco movimento. Aqui recrutamos três homens para nos acompanhar. A partir de agora não há mais navios e temos de seguir em barcos a remo.

* * *
Estou fora de forma. Estamos embrenhados na floresta há dois dias e já começo a sentir os sintomas de fadiga. O tempo é cruel e não respeita patentes. Avançamos lentamente pelo matagal. A floresta aqui é bem diferente daquelas da Europa ou da África. As árvores são muito altas, o que não impede a existência de vegetação rasteira. Assim, temos de abrir caminho por um emaranhado de folhagens, raízes e cipós, que muitas vezes se tornam um obstáculo instransponível, fazendo com que desviemos diversas vezes do caminho.
A noite cai repentinamente sobre a floresta, como se o céu foi fosse coberto por um véu negro.
Nossos guias não se atrevem a viajar à noite e nem eu os forçaria a isso. Sete horas da noite e a floresta já está tomada de tal escuridão que é impossível enxergar dois palmos à frente e os insetos tomam o poder, atacando de todos os locais possíveis. Pouco antes que caia a noite, nós paramos, montamos acampamento, e acendemos a fogueira, tomando o cuidado de limpar a área em volta das milhares de folhas que caem continuamente das árvores, para evitar incêndios.
Sons estranhos, como tambores, retumbam na escuridão. Os caboclos dizem que é o Curupira que testa a resistência das árvores antes das chuvas. Dizem que o Curupira é um menino de cabelos de fogo e pés para trás.
De fato, chove torrencialmente e a floresta vira um inferno. Dormimos em redes e ficamos ensopados. O barulho das gotas d’água desabando sobre as folhas dá a impressão de que estamos rodeados por um exército de pequenos homens em dança de guerra. No meio da noite a floresta alaga e somos obrigados a levantar mochilas e todos os outros pertences, pendurando-os no alto das árvores.
A chuva pára, mas, ensopado, sou dominado por um medo ancestral da rede ser invadida por uma cobra. Os homens acordam cedo e ouço-os falando baixo. Pergunto a Lopez sobre isso.
- Eles falam sobre o Mapinguari. – responde ele.
- Mapinguari?
- É um ser da floresta. Dizem que se parece com um macaco peludo, mas tem mais de dois metros e não possui pescoço, de modo que a cabeça emenda diretamente com o ombro.
- Apavorante. – comento.
- Ainda não ouviu a melhor parte. Conta-se que o Mapinguari tem a boca na barriga. Uma bocarra enorme, cheia de dentes finos como os de tubarão e de onde saiu um hálito fétido...

* * *
A comida que trouxemos acabou. Estamos nos alimentando de peixe, camarão e uma fruta escura de nome açaí, que os caboclos esquentam para que a polpa amoleça e espremem na água, formando um suco grosso e nutritivo. Felizmente, essa fonte de alimentação é abundante.

* * *
Lopez está tendo febre toda noite. Ele tem calafrios e balbucia coisas frases ininteligíveis. Os nativos dizem que ele está com malária. Eles preparam chás com plantas da floresta, mas nada parece resolver.

* * *
Lopez desapareceu durante a noite. Enquanto dormíamos, ele provavelmente caiu de sua rede e saiu em delírio pelo breu da floresta.

* * *
Estou dormindo quando sinto algo apertando minha garganta. É Lopez. Ele tem os cabelos desgrenhados e baba, como um cão raivoso. Nós lutamos e os outros acordam. Ele finalmente consegue me imobilizar e, pegando uma adaga, prepara-se para perfurar o meu crânio quando um caboclo o antige com uma pedra. Lopez cai ao chão e os outros sobre ele. Depois de uma luta feroz, o pobre homem acaba morto.

* * *
Os guias estão tensos e falam entre si. Dizem que a expedição é amaldiçoada e que os seres da floresta se voltaram contra nós. Eles tentam me convencer a voltar, mas afirmo categoricamente que irei até o fim, até o meu objetivo ou minha morte.

* * *
Estou perdido. Os nativos acordaram antes de mim e fugiram. Levaram todas as coisas, exceto minha mochila, a rede e um facão. Dentro da mochila tenho uma troca de roupa, uma bússola, um cantil e um caderno, mas não comida. Estou perdido.

* * *
Já faz dois dias que estou perdido. Tenho procurado andar na direção noroeste, onde, teoricamente, fica a cidade das Amazonas, mas não há pontos de referência e mesmo a bússola é de pouca utilidade, pois a densidade da floresta constantemente me desvia do caminho. A fome corrói meu estômago, mas felizmente foi possível achar água limpa em uma fonte e pude encher o cantil.

* * *

Três dias perdido. Achava que morreria de fome quando encontrei uma árvore frondosa, em formato de pinheiro, repleta de frutos vermelhos que aqui chamam de jambo. Embora a casca seja vermelha, o fruto é branco por dentro e muito agradável ao paladar.

* * *

Quatro dias perdido. Comi o quanto pude da fruta vermelha, enchi minha mochila com elas e me pus a caminho. Depois de vários dias sozinho, os barulhos da floresta me assustam. De tempos em tempos, ouço galhos quebrando e folhas secas sendo pisadas. É como se estivesse sendo seguido. A floresta parece ter vida e espiona cada passo meu. Em meu estado paranóico, sinto como se os pássaros que cantam e trinam formassem uma rede secreta e mágica de informações sobre o forasteiro que ousa desafiar a mata.
O pior é quando chove.
As gotas fortes da chuva batendo contra as folhas secas formam uma orquestra de sons abafados e assustadores... e me pergunto se seres estranhos não se aproveitam disso para se aproximar e me vigiar.

* * *

Quinto dia. Estou completamente perdido, andando em círculos e voltando sempre para o mesmo lugar. As frutas acabaram e a fome me consome. Também tenho sede e sobrevivo lambendo as folhas molhadas pelo orvalho da madrugada.

* * *

Sexto dia. Sinto febre e calafrios. Embora esteja em pleno Equador, sinto frio como se estivesse no inverno londrino. Vago pela floresta a esmo. Não sei para onde estou indo.

* * *

Sétimo dia. Vaguei o dia e a noite inteira, queimando em febre, assustado com cada som da floresta, tropeçando nos galhos, importunado por moscas que me parecem gigantescas.

Então, quando acreditava que ia morrer, quando caía ao chão, desfalecido, disposto a aguardar pelo fim, vi vultos brancos se aproximando. No começo eram como névoa, mas logo distingui formas e percebi que eram mulheres. Elas deviam estar em carregando em uma espécie de maca. Entramos em uma clareira e visualizei um enorme portão que me pareceu feito de ouro. O portão se abriu para nós e entramos na cidadela por uma praça enorme e suntuosa. A febre me consumia, mas eu só conseguia pensar em uma coisa: finalmente havia chegado à cidade das Amazonas!
Depois disso o véu da inconsciência cobriu meus olhos e adormeci em meio a sonhos dourados.

* * *

Não sei quantas horas dormi. Talvez tenha dormido dias seguidos. Acordo com uma mulher ao meu lado, me oferecendo uma espécie de sopa. Ao contrário do que eu imaginava, ela não se veste como uma deusa grega. Na verdade, ela usa um vestido curto de tecido leve, adornado com penas. Nos pés, usa uma sandália de couro e uma tiara de couro na cabeça.
O quarto em que estou tem teto alto e parece ser feito todo de pedra. Estou deitado em uma cama de madeira nobre enfeitada em alto-relevo com imagens de mulheres guerreiras, preparando-se para a guerra. As figuras parecem saídas de um templo inca ou maia.
Quando me sinto melhor o bastante para poder caminhar, minha enfermeira me leva para fora. O palácio tem corredores largos e compridos e sua arquitetura lembra os palácios incas sobre os quais li diversos relatos.
Mais uma vez me deparo com a praça que vira ao chegar, mas agora, vista sem o véu da febre e da inconsciência, ela me parece incrivelmente bela. Nem mesmos os jardins do sultão de Bagdá rivalizariam com ela. Há belos e poderosos arcos de pedra com imagens em alto-relevo que parecem cantar, na linguagem muda das rochas, os feitos das amazonas. Flores as mais variadas se espalham pelo espaço vazio em tal quantidade que a praça toda parece exalar um perfume inebriante.
Aqui e ali, sentadas em bancos, belas mulheres conversam ou lêem enquanto ando entre elas. Uma delas me inpressiona ao ler um livro aparada apenas na ponta de um pé, tendo a outra perna sobrada, como um iogue.
Atravessamos a praça e entramos naquela que parece ser a construção principal do conjunto. Atravessamos imensos portais de madeira e depois um salão. Finalmente paramos na frente de um trono.
Eu, acostumado a lidar com pessoas poderosas, prosto-me ao chão, mas uma voz suave como a brisa da primavera ordena que eu me levante. Então olho para cima e vejo uma mulher de cabelos longos e pretos. Seus olhos, negros como a noite, são repletos de curiosidade e gosto de aventura. É a rainha, e chama-se Maíra.
Passo vários dias na cidadela das Amazonas. A rainha faz perguntas e mais perguntas sobre o mundo lá fora e desconfio que seu grande interesse no mundo exterior não é bem visto pelas outras. Conto-lhe sobre minhas andanças pelo mundo árabe e pela África. Quando digo que a Inglaterra é o maior império do Mundo, ela ri.
Estou recuperado, e Maíra diz que devo voltar para onde vim. Vão me conseguir um guia indígena, que me levará até um local povoado.

* * *

Maíra levantou os olhos do caderno, entre intrigada e extasiada.
- A única exigência que fizemos foi que ele deixasse conosco seu diário. – explicou Najara. Um grupo de índios o levou em segurança até a cidade mais próxima.
- Há algo que não entendo...- disse Maíra.
- O que é?
- A rainha, chamava-se Maíra...
- Há muitas coisas que você não sabe, querida. Mas não se preocupe: tudo tem seu tempo... tudo tem seu tempo...

4/14/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 6 – O HOMEM QUE CONTROLAVA O TEMPO



Marcos e Antônio acordaram lado a lado e olharam-se, atônitos.
Estavam no meio de escombros de uma velha construção em ruínas. O cheiro forte de urina misturava-se ao aroma acre da madeira em decomposição. Nos canto mais escuros, ratos enormes conversavam entre si com guinchos que pareciam choro de bebês.
- O que... o que estamos fazendo aqui? – perguntou Antônio.
Marcos passou a mão na nunca, tentando afastar uma leve dor de cabeça.
- Não sei. Aliás, que lugar é esse? Não me lembro de nada...
- Vamos, vamos sair daqui...
Quando atravessaram a porta, Antônio reconheceu o local.
- Ei, parece o Palacete Paris. Cara, como está, pode não parecer, mas essa é uma das construções mais lindas da cidade... se eu tivesse bastante dinheiro, usava para restaurar este local...
- Tá, só se você ganhasse na loteria...
- Bem, não custa nada sonhar, não é mesmo?
E se afastaram pela rua, de volta para suas casas e para suas vidas. Na praça, o relógio marcava sete horas da noite. Os relógios de Marcos e Antônio também marcavam sete horas...

* * *
Marcos viu-se de repente no meio da rua. Ele imaginava onde Antônio teria comprado o relógio. Havia um sebo duas ou três quadra abaixo do banco. Depois de alguma procura, encontrou-o. Era uma casa simples, com portas de correr. O espaço era comprido, mas estreito, organizado com uma divisória. Na parte externa ficavam os livros, no fundos, objetos antigos.
Marcos foi direto para os fundos. Alegrou-se ao ver que o relógio ainda estava lá, na parte mais baixa da prateleira, escondido atrás de uma mesa de madeira.
O velho, comodamente sentado no balcão, na entrada da loja, pediu 100 reais, mas Marcos pechinchou até chegarem a 50 reais.
Saiu da loja com o objeto nos braços e procurou uma rua deserta. Assim que se viu longe dos olhos de qualquer pessoa, levantou vôo. Atravessou a cidade até a lixeira e soltou o relógio. A queda de dezenas de metros destroçou o objeto, fazendo com que suas partes, mecanismos e engrenagens se espalhassem em meio ao lixo. Então tudo virou inconsciência.

* * *

Antônio pegou na caixa de madeira do relógio com uma certa reverência, como se manipulasse um objeto sagrado. Então abriu uma portinhola lateral e dela sacou uma manivela, que girou sob sua mão, num rangido de protesto.
Fez isso e afastou-se dois passos, ficando ao lado de Marcos.
O relógio tiquetaqueava e seus ponteiros giravam sem lógica ou ordem, como se houvessem enloquecido. O ponteiro de horas ia para a direita, o de minutos para a esquerda e o de segundos, ora para a esquerda, ora para a direita.
Marcos olhou o objeto atentamente, concentrado. Uma imagem começou a se formar. O local era conhecido: uma rua de Santa Helena. A pergunta era quando.
Sem esperar uma resposta, Marcos pulou sobre a imagem e desapareceu, para espanto do amigo.

* * *
Antônio olhou, divertido, para o amigo. Seu rosto normalmente sério parecia ter passado por uma espantosa mutação que revelava um menino feliz e empolgado.
- Você sabe de minha paixão por sebos.- começou ele. Adoro livros usados. Um dia eu estava em um sebo quando vi o relógio. Por alguma razão, fiquei fascinado por ele e decidi comprá-lo. O homem da loja queria cem mangos, mas consegui convencê-lo a aceitar cinqüenta. Quando caminhava com ele de volta para casa, eu me perguntei porque estava tão nervoso. Por que minhas mãos estavam tremendo? Por que meu coração pulsava como se eu fosse ter um ataque cardíaco? Assim que cheguei, coloquei o relógio sobre a mesa e comecei a mexer nele. Descobri uma manivela. Talvez se eu a girasse, poderia fazê-lo voltar a funcionar. Então algo estranho aconteceu. Uma espécie de halo de luz se abriu em leque, acima do relógio. Por alguma razão, eu me lembrei de um fato específico. Eu era jovem e tinha ido ao médico do INSS. Cheguei lá umas cinco e meia da manhã, mas já não havia mais senhas, então eu fiquei caminhando pelas ruas desertas. Quando amanheceu, eu me sentei em um banco de praça e comecei a ler o livro que tinha levado, sentido a neblina me envolver, o orvalho das plantas se evaporando e se elevando até as minhas narinas. O livro era A máquina do tempo, de H.G. Wells. Para meu espanto, a cena se projetou na luz à minha frente. Não era como uma projeção de cinema, era como olhar por uma janela. Percebi o que era o relógio e como controlá-lo. O resto é óbvio. Eu fui ao futuro e descobri quais seriam os números sorteados na Loto. Agora estou milionário.
- Pode me mostrar como funciona? – perguntou Marcos.

* * *
Marcos olhou-o intrigado, tentando entender a situação.
- E o tempo não é absoluto?
- Não. Nem de longe. Einstein demonstrou que o tempo é relativo. O mesmo fenômeno, visto por duas pessoas diferentes, pode estar acontecendo em momentos diferentes. O tempo também é influenciado por forças como a gravidade e a velocidade. Se você estiver viajando à velocidade da luz, o tempo passará mais lentamente para você. Da mesma forma, o tempo passa mais lentamente em locais com alta gravidade. Imagine como deve ser o tempo em um buraco negro!
- E o que isso tem a ver com o relógio e a mega-sena?
- Esse relógio é uma espécie de observatório privilegiado para o qual se volta a relatividade do tempo,uma espécie de vórtice no tempo-espaço....
- Você usou-o para descobrir qual seria o resultado da loteria?
- Imagine as possibilidades fantásticas que esse aparelho representa!
- E o perigo também...
- Perigo?
- Todos os relógios parecem ter enlouquecido... talvez você tenha mexido com algo que... eu não sei... uma espécie de equilíbrio muito delicado...
- Bobagem. Qualquer que seja o equilíbrio que o universo precisa, duvido que o que fiz vá mudar alguma coisa... além disso, há uma tendência universal para a homeostase, para o equilíbrio. - argumentou Antonio.
- Nem todos os sistemas tendem para o equilíbrio. Talvez o tempo tenha uma tendência mais entrópica, caótica... – rebateu Marcos.
Calaram-se, como se tivessem chegado a um impasse.
- É apenas um observatório, ou é possível participar do que está sendo mostrado?
- É possível também participar, o que é muito perigoso, especialmente no passado. Conhece o paradoxo do pai e do filho?
- Sim, um homem volta ao passado e mata seu pai antes que ele se case com a sua mãe. Assim, ele nunca teria nascido e, portanto, jamais poderia voltar ao passado para matar seu pai... onde arranjou o relógio?

* * *
Dois meses depois, Gabriel resolveu visitar Antônio. Este recebeu-o com a alegria de uma criança que ganha um brinquedo novo e tem finalmente alguém para mostrá-lo.
Antes de entrarem, Antônio mostrou-lhe a fachada da casa, as grades, o pequeno parapeito no segundo andar, sob o qual havia insuspeitos relevos.
- A ma ioria das pessoas jamais teria a idéia de olhar para cima, mas os construtores prepararam esse pequeno presente para o sortudo que tivesse essa visão privilegiada. – explicava Antônio, com indisfarçável entusiasmo. É tudo uma obra-prima, das linhas arquitetônicas aos pequenos detalhes.
Então entraram e percorreram a sala, a copa, os quartos... Antonio mostrava tudo e gabava-se da rapidez com que havia terminado a reforma.
Ele deixou por último um quarto no segundo andar. Era fechado à chave e Antonio trazia a chave na cintura.
- O que vou mostrar a você, poucas pessoas já viram. Nem sei porque vou mostrar-lhe. Talvez porque eu saiba que você é uma das poucas pessoas capazes de compreender.
Era um quarto vazio, exceto por uma mesa e, sobre ela, um relógio antigo, de madeira.
- E então? – perguntou Marcos.
- E então? – espantou-se Antônio, como se o outro não conseguisse ver o óbvio. O relógio!
- Parece ser uma raridade, mas não compreendo porque todo esse mistério... você o comprou há pouco tempo?
- Não, há mais de dois meses...
Marcos franziu o cenho.
- Então não é uma relíquia. Há dois meses você era tão pobre quanto eu.
- Na verdade, esse relógio é a razão pela qual hoje eu tenho tanto dinheiro...
- Como assim?
Marcos aproximou-se e tocou o objeto.
- Como assim?
- O tempo é a chave. Ou pelo menos a noção que temos de tempo. Newton achava que o tempo era um valor absoluto. Ou seja, ele permaneceria o mesmo em todos os locais e situações. Ele caminharia da mesma maneira, estivesse você em Marte ou no quintal de sua casa....
* * *
Antonio não foi mais ao banco. Estava muito ocupado com a realização de seus sonhos. Fazia questão de inspecionar pessoalmente as obras de restauração do Palacete Paris. A imprensa noticiava isso como uma espécie de excentricidade, que logo deixou de provocar interesse no público. O assunto principal passou a ser outro: a desregulagem do tempo. Relógios atrasando ou adiantando-se tornaram-se cada vez mais freqüentes. Até a programação da TV e do rádio ficou prejudicada. Programas começavam sem que seus locutores tivessem chegado, anúncios locais entravam em cima da programação nacional... todos os relógios pareciam estar loucos.

* * *
No final da tarde, Marcos levou o relógio ao relojoeiro. Era um velhinho simpático e falador. Marcos espantava-se com sua coordenação motora, o modo com, apesar da idade, manipulava peças minúsculas.
- Hoje foi o dia. – disse o velhinho. Nunca trabalhei tanto na minha vida. Parece que todos os relógios da cidade resolveram adiantar, ou atrasar... até o ponto que já não sei mais qual relógio está marcando a hora certa.... bem, não parece haver nada de errado. Vou fazer apenas uma limpeza. Se ele continuar com problemas, traga que só vou cobrar se for necessário trocar uma peça...
Marcos agradeceu, pegou o relógio e foi para casa.

* * *
Marcos chegou apressado ao banco, temendo estar atrasado, mas mesmo que estivesse mesmo atrasado, pouco notariam isso. O local estava um alvoroço de balões (restos do aniversário de um funcionário), sorrisos e saudações. No centro das atenções, Antônio Simões, um funcionário tímido, de óculos de aro preto, uma calvície avançando perigosamente pela já rala cabeleira. Era estudante de artes em uma faculdade particular à noite. Uma das poucas pessoas com as quais Gabriel gostava de conversar.
- O que está acontecendo?
- O que está acontecendo? – espantou-se alguém. Onde você estava? Na Lua? Você está diante do mais novo ganhador da mega-sena...
- Acumulada! Mega-sena acumulada! – ajuntou alguém.
- E quem é o felizardo? - indagou Marcos, sorrindo.
Todos apontaram para Antônio.
Gabriel deu-lhe um abraço.
- Cara, você?!
- É, eu sabia que ia ganhar...
Pipocaram os gritos de “Modesto”, “Sortudo”.
- E agora, o que você vai fazer com o dinheiro?
- Bem, antes de mais nada, quero realizar um velho sonho. Já ouviu falar do Palacete Paris?
- Sim, claro, está abandonado...
- Mas é a construção arquitetônica mais bela de Santa Helena. Vou compra-lo e restaura-lo!

* * *
A primeira coisa que Marcos percebeu quando desceu do ônibus é que seu relógio estava atrasado. O relógio da praça marcava 8:50, e em seu relógio eram apenas 8:30. Ele parou ao lado de uma banca de jornais para acertar o relógio e aproveitou para olhar as manchetes. A Folha de Santa Helena e a Gazeta de Santa Helena traziam informações sobre política, especialmente sobre as próximas eleições, mas a Gazeta Popular trazia um fato curioso: um ganhador da mega-sena acumulada era de Santa Helena. Os outros dois jornais também traziam a informação na capa, mas com menor destaque.
“Milhões de reais”, pensou Marcos. “Viria bem a calhar, ainda mais agora, com Cristina grávida”.
Então olhou o relógio da praça e espantou-se: eram 9:10 e ele estava atrasado, mas não parecia terem se passado vinte minutos. Olhou para o seu próprio relógio e ele marcava 8:35.
“Os relógios estão doidos”, pensou, correndo para o banco.

4/02/2006


OS ANJOS
EPISÓDIO 5 – DESAPEGO

No dia seguinte, Marcos e Cristina não foram trabalhar. Dormiram até tarde e conversaram pouco. Era ainda difícil lidar com o que tinha acontecido: o seqüestro de Cristina, o homem de preto. Marcos quase o matara. Pela primeira vez em sua vida, ele quase tirara a vida de uma pessoa e esperava jamais precisar voltar a fazer isso.
Ele foi o primeiro a acordar e se sentiu feliz por ter Cristina ao seu lado. Só damos valor ao que perdemos e ele quase perdera a esposa. Como forma de demonstrar o seu carinho, ele a beijou na testa. Cristina acordou desesperada e afastou-o com um empurrão. Então percebeu que era ele e o abraçou, chorando. Seus olhos ainda estavam vermelhos quando tomaram café e ela não disse uma única palavra. Na verdade, evitava o olhar do marido.
Na hora do almoço, Marcos quebrou o silêncio.
- Sabe, ontem, enquanto procurava você, eu pensava o tempo todo em minha mãe.
- Você me falou muito pouco de sua mãe. – disse Cristina, aliviada por ele ter , finalmente, tomado a iniciativa da conversa.
- É verdade. Falo muito pouco de minha mãe. Ela morreu muito cedo... quando era pequeno, eu podia ouvir, sentir, cheirar, perceber o gosto das coisas de forma extremamente minunciosa. E eu podia voar. Levei algum tempo até descobrir que as outras pessoas não tinham as mesmas habilidades que eu tinha. Lembro das crianças caçoando de mim quando eu perguntava se elas podiam voar...
- É sério? Você achava que todo mundo podia voar?
- Achava. Eu não me sentia especial. Para mim, eu era como qualquer outro...
Cristina segurou sua mão e apertou-a, como se lhe dissesse, através de gestos, que sim, ele era especial para ela.
- Poucos meses depois que descobri esses talentos, comecei a ouvir vozes. Há algum tempo li um livro que dizia que crianças costumam conversar com pessoas desencarnadas e pensei: Era isso! Era isso que acontecia comigo. Eu falava com espíritos e eles me davam conselhos, me antecipavam o futuro... uma vez eles me disseram para não pegar um ônibus e depois descobri que esse ônibus havia sofrido um acidente...
- E a sua mãe?
Marcos abaixou os olhos.
- Um dia ela acordou, disse que o café estava pronto e saiu para trabalhar. Eu estava lavando o rosto quando ouvi o seu grito. Saí correndo. Havia várias pessoas olhando assustadas para um corpo estendido no chão. Eu abri caminho entre elas e encontrei minha mãe caída no chão, o sangue escorrendo de sua boca. Ela morreu em meus braços. Nem deu tempo de chegar ao hospital... Naquele momento, eu tive ódio das vozes que falavam comigo. Por que elas não haviam me avisado? Eu teria voado e tirado minha mãe do caminho do carro... Por que me avisaram quando eu ia pegar o ônibus que sofreria o acidente, mas não me avisaram quando minha mãe ia morrer? Por quê?
Marcos ficou em silencio, como se remoesse essa pergunta dentro de si.
- Talvez ela devesse morrer. – foi a reposta de Cristina. Talvez fosse algo que eles não pudessem lhe contar...
- Sim, talvez. – concordou Marcos, fungando. Mas na época eu só podia pensar que minha mãe estava morta e eles não haviam me avisado. Eu era um menino de 10 anos, sozinho no mundo. De certa forma, amaldiçoei meus talentos, assim como amaldiçoei as vozes. De que me adiantava poder voar, se isso não servira para que eu salvasse minha mãe? De que adiantara minha superaudição se eu não escutara o carro se aproximando dela?
Novo silêncio. Marcos tampou os olhos, tentando esconder as lágrimas.
- Depois disso, nunca mais ouvi as vozes. Também nunca mais usei meus poderes. Até um ponto em que eu me esqueci completamente deles. Isso até alguns dias atrás, quando eu acordei com uma dor de cabeça terrível...
- Você tinha me falado do orfanato, mas nunca tinha me contado sobre sua mãe.
Cristina pegou as mãos de Marcos e olhou com ternura.
- Estou muito feliz ao seu lado. Para mim, você é especial. E estou mais feliz ainda por você estar,finalmente, se abrindo comigo...
Os dois se beijaram e ele a levou para o quarto. Fizeram amor durante muito tempo,
como se não existisse o tempo e quisessem aproveitar cada segundo.

* * *
À tarde, Marcos foi à banca de revistas ver se algum jornal havia noticiado os acontecimentos do dia anterior. Descobriu que a Gazeta Popular publicara uma edição extra, vespertina, para contar os fatos da prisão do chamado “maníaco do porão”. Era uma edição magra, com apenas 12 páginas, letras garrafais e muita propaganda. Mas ainda assim estava “vendendo como banana”, como disse o jornaleiro.
O jornal informava que fora encontrado, inconsciente, na noite anterior, o homem que provavelmente era o responsável pelo desaparecimento de várias mulheres em Santa Helena nos últimos anos. Estavam em um porão. O delegado responsável pelo caso dizia que a prisão só fora possível graças a uma denúncia anônima.
“Junto com ele”, dizia a reportagem, “foram encontradas duas mulheres. Uma delas, identificadas como Wilma Aparecida dos Santos, 31 anos, havia desaparecido há um ano no estacionamento da empresa em que trabalhava. Ela estava desnutrida e com ferimentos nos pulsos e nas pernas. A outra mulher não foi identificada e, segundo os policiais, parece ter desaprendido a andar e a falar”.
A matéria continuava falando sobre as condições em que as mulheres foram encontradas e tinha declaração de um perito da polícia, segundo o qual a mulher não identificada havia sofrido sérios problemas de personalidade: “Esse psicopata conhecia fundamentos de psicologia comportamental e usou isso para condicionar essas mulheres e fazer delas o que bem entendesse”.
Sob o porão os policiais haviam encontrado vários corpos em decomposição e até esqueletos. Aparentemente, o cheiro do cortiço abafava o fedor dos corpos em decomposição, razão pela qual os vizinhos nunca desconfiaram de nada.

A matéria trazia declarações de vários vizinhos dizendo que o maníaco parece absolutamente normal. Uma vizinha lembrou que ele a ajudava a cuidar do jardim e sempre oferecia sucos e biscoitos para as crianças da rua.
Segundo o jornal, o psicopata havia sido derrotado pelo marido da vítima mais recente, mas não sabia dar informações sobre quem era esse misterioso salvador.
Por alguma razão, outra notícia chamou a atenção de Marcos:

FANTASMA ASSOMBRA LOJA DE DEPARTAMENTOS

Um boato está colocando em polvorosa os funcionários de uma loja de departamentos muito conhecida na cidade: o local estaria sendo freqüentado por um fantasma. Uma funcionária afirmou ao nosso jornal que um homem entrou no vestiário e não saiu. Quando foi procurar por ele, encontrou apenas algumas roupas velhas.
Marcos não leu o resto. Dobrou o jornal, colocou debaixo do braço e rumou para casa.
Estava decidido a abandonar a sua vida de vigilante. O que acontecera na noite anterior o deixara preocupado. Ao utilizar suas habilidades, ele teria contato com assassinos, ladrões, traficantes, corruptos... pessoas que poderiam ter o impulso de se vingar. Ele não temia por si, mas por sua esposa grávida.
Marcos havia discutido isso com Cristina e ela concordou. Temia pelo futuro e queria ter o marido ao seu lado, e não voando pela cidade à noite, quando ela ficaria sozinha.
Ele protegeria a cidade, mas quem protegeria sua esposa? As imagens de sua mãe morta, estendida no chão, ensangüentada... Marcos jamais se perdoaria se algo assim acontecesse à sua esposa.
Um Hare Krishna o parou, interrompendo seus pensamentos. Falava rápido e sua voz parecia vazia de significado. Em certo momento ele estendeu a Marcos um livro grosso. Meio a contra-gosto e mais para se livrar do assédio, ele pegou o livro. Chamava-se Bagavad-Gita. Marcos abriu uma página ao acaso e leu:
“Dedica-te à obra exclusivamente, jamais aos seus frutos. Tuas ações não devem ser motivadas pelo proveito que possam trazer; não deve tampouco te abandonares à inação. Firme na yoga, executa tuas obras sem apego nem interesse, permanecendo o mesmo qualquer que seja o resultado, feliz ou adverso”.
Marcos devolveu o livro e voltou a andar, como que hipnotizado. As palavras que lera haviam causado uma impressão profunda em sua alma. Da mesma forma que antes estava decidido a abandonar sua atividade como vigilante, agora estava decidido a continuá-la.
Mas para isso precisava de algo que encobrisse sua identidade. Chegando em casa, conversou sobre isso com Cristina e decidiram-se por um capote e um capuz levantado.
À noite, quando assistia ao telejornal, viu uma matéria especial sobre um homem que estava salvando pessoas na cidade.
A reportagem dizia inclusive, que o estouro do cativeiro do maníaco do porão se devesse a esse misterioso herói.
Nas ruas, algumas pessoas já começavam a lhe dar um nome: anjo.
O anjo. Era assim que o chamavam. Precisava estar à altura do nome.