2/27/2006


ILustração Jean Okada
MAÍRA – A GUERREIRA AMAZONA
Episódio 1 - Origens

O pequeno avião monomotor sobrevoava a floresta, espalhando um barulho rouco pela imensidão verde. Lá do alto uma menina esticava a cabeça para olhar pela janela. Seus pequenos olhos de mel saltavam de um lado para o outro, maravilhados com os rios, que serpenteavam a floresta em mil bifurcações. Tinha os cabelos lisos curtos da mesma cor dos olhos.
- Mamãe! Mamãe! Olhe que lindo. – exclamou ela.
Mas a mãe não respondeu. Seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela abraçou a menina e murmurou:
- Eu te amo. Aconteça o que acontecer, lembre-se que mamãe ama você.
Só então a menina percebeu que algo estranho estava acontecendo com o avião. A aeromoça, sentada de frente para eles, estava estática, como se seus olhos tivessem contemplado a morte. Os ouvidos da menina se tamparam. O avião estava em queda livre.
O impacto aconteceu entre as árvores. Houve um estrondo e o momento parou. O impacto deslocou as poltronas e os tripulantes se espalharam pela cabine.Galhos quebraram as janelas como visitantes inoportunos.
Quando o barulho terminou, a menina levantou os olhos e percebeu que era a única sobrevivente. Ainda tentou acordar a mãe, mas, por mais que a balançasse, ela permanecia inerte, com seus olhos de vidro.
A pequena saiu da cabine e começou a andar pela floresta sem saber o que fazer. A escuridão cai sobre a mata com rapidez incrível. Quando deu por si, já era noite e ela não sabia para onde ir. Todos os caminhos pareciam o mesmo.
A garota ficou muito tempo assim, perdida na escuridão, até visualizar uma luz. Inicialmente achou que fosse uma casa, mas era uma luz estranha, etérea.
De repente viu-se frente a frente com uma espécie de cidade de luminosa. Havia uma enorme muralha contornando-a e um portão dourado mais alto que cinco homens um sobre o outro. O portão estava aberto, como que convidando a menina a entrar. Enquanto passava por ele, a garota viu, gravadas nele, cenas de mulheres guerreiras, parecidas com índios, enfrentando homens de armadura, como aqueles que ela via nos livros de história.
Lá dentro havia uma praça, que a menina atravessou como que guiada por uma força invisível. No final dela, um palácio imponente todo de ouro. A menina entrou pelos portões do palácio e se deparou com uma mulher sentada em um trono. Força e autoridade pareciam emanar dela. Tinha cabelos lisos e pretos, assim como os olhos, que eram da cor da noite. Não era mais alta que uma mulher normal, mas sua imponência dava a impressão de que se tratava de uma giganta. Como roupa, usava uma espécie de armadura de ouro enfeitada com penas coloridas. A mulher olhou para a menina e sua voz soou como instrumentos musicais:
- Bem vinda, Maíra, aqui você encontrará um novo lar e uma nova mãe.

* * *
A pequena menina tropeçou e foi empurrada para a frente.
- Vamos, entre! – Gritou o feitor, em sua voz de trovão.
A menina se ajoelhou, implorando.
- Por favor, senhor... me deixe voltar para casa...
O rosto do homem era insensível como gesso. Todo ele era enorme e seu pescoço parecia ser maior que a cintura da menina. Ele sorriu levemente, imaginado que poderia quebrar sua coluna usando apenas os dedos.
- Entre! – disse ele sem gritar, mas firme.
A moça tremeu... de medo.
- Por favor...
- Entre!
A pobre percebeu que era impossível resistir ou argumentar. Estava no meio da floresta, longe de qualquer lugar conhecido, cercada de homens que poderiam fazer qualquer coisa com ela. Sua única chance de sobrevivência era obedecer. Assim, ela entrou e a porta foi trancada atrás de si.
Os homens, que descansavam ali perto, começaram a rir.
- Há! Há! André, você sabe mesmo como lidar com uma mulher!
O feitor olhou para eles com a mesma expressão que usara com a pequena.
- Os homens precisam de diversão, ou não trabalham direito...
Antes a região era uma tribo indígena, mas agora os índios haviam sido expulsos e local se tornara uma imensa mina de ouro. Havia cerca de 30 homens trabalhando no garimpo. Muitos deles iam para a cidade atrás de mulher, mas isso atrapalhava a produção. O novo dono das terras decidira que o melhor era trazer as mulheres até eles. Meninas foram compradas ou raptadas em cidades próximas e levadas para o garimpo. No começo eram apenas duas, mas agora já era possível contar uma dúzia delas. Ficavam ali até que se decidisse que não eram mais úteis. Então eram abandonadas na floresta...

* * *



A Rainha pegou a menina em seu colo e chamou as cortesãs para que trouxessem comida e sucos para ela. A menina comeu como uma desesperada, tanto por estar com fome, quanto pelo jantar estar uma delícia.
A pequena Maíra aprendeu que estava no reino das Amazonas. Soube que as mulheres estavam lá há tanto tempo que ninguém se lembrava mais de onde tinham vindo.
Durante muito tempo, elas viviam isoladas, tendo contatos esporádicos com os índios. Os mais fortes e virtuosos entre eles eram escolhidos para acasalar com as amazonas. Todos os anos eles saiam de suas tribos e ficavam parados à frente do grande portão, esperando pela autorização para entrar. Depois eram levados para um pátio, onde as mulheres os escolhiam. Passavam a noite com elas. Em troca dos favores sexuais, ganhavam um pequeno sapo, o muiraquitã, feito de uma pedra verde e lisa que não era encontrada em nenhum outro local. Os portadores do muiraquitã eram admirados e invejados por todos os outros. Era a mais alta distinção que podiam alcançar.
No ano seguinte, eles voltavam no mesmo dia à cidade das amazonas. Se o fruto da noite anterior era uma menina, era educada entre as guerreiras. Se fosse homem, era devolvido ao pai, para ser criado entre os índios.
Certa vez os índios vieram pedir ajuda. Estavam sendo atacados por homens altos, de pele clara e cheiro terrível. “Parece que nunca tomam banho”, comentou o pajé.
A Rainha ordenou que todas se preparassem para o combate. Levaram dois dias para chegar ao rio no qual os invasores navegavam. As amazonas deram a eles a oportunidade de fugirem, mas eram idiotas e se prepararam para a guerra. Logo uma chuva de flechas voou sobre eles. Mas não eram flechas comuns. Nada, nem mesmo as fortes roupas alcochoadas ou as armaduras pareciam impedir que elas se cravassem na pele. Os europeus ainda tentaram atirar, mas logo entraram em debandada, totalmente atônitos.
A rainha Janaina contava essas histórias à pequena Maíra e ria da covardia dos homens brancos. Depois dava-lhe um beijo de boa noite e saia do quarto.
A pequena acordava cedo. Embora fosse a filha adotiva da Rainha, era educada junto com as outras. Participava dos treinamentos de combate, das corridas.
Rani, a instrutora de arco e flecha, era uma mulher pequena e magra, de cabelos e olhos negros. Parecia frágil, mas quando usava o arco, podia vencer qualquer um. Tinha um carinho todo especial por Maíra.
- Não use o arco. – dizia. Seja ele. Deixe que o arco seja uma extensão de seu próprio braço. Não olhe para o alvo, olhe para além dele. Sinta-o.
Às vezes, quando terminava uma lição, Rani se sentava ao lado de Maíra e conversava com ela sobre a vida.
- A vida é como o arco e a flecha. – assegurava. Nós somos o arqueiro. Há pessoas que não sabem em que estão atirando, que não conhecem o alvo. Essas, mesmo que acertem, jamais o saberão. Outras enxergam apenas o alvo, e não percebem o que está além dele. Essas pessoas acham que sabem no que estão atirando, mas não sabem. Suas setas são cegas.
Maíra também de afeiçoou a Nara. Essa, ao contrário de Rani, era enorme e forte como um touro. Tinha olhos negros enormes, que impressionavam a menina. “Olhos de boi”, pensava ela. Sua arma predileta era uma borduna enfeitada com motivos indígenas. Era tão pesada que Maíra não conseguia nem mesmo levanta-la. No entanto, a giganta andava com ela para cima e para baixo, como se fosse feita de isopor.

* * *

O feitor acordou com um barulho estranho. Pareciam ser gritos abafados de moças e gemidos de homens. Sentou-se na cama e esfregou os olhos, como se tirasse areia deles.
Tinha dormido com a roupa de trabalho, inclusive as botas, e tudo à sua volta parecia emitir um cheiro misto de suor e chulé.
- Droga! Os homens devem ter aproveitado para fazer a festa antes do tempo...
Levantou-se. Suas mãos tatearam no escuro, procurando o interruptor. ]
Há meses estava ali, no meio da floresta. Ao contrário dos outros feitores, não gostava de ir para a cidade grande. Estava economizando. No final, teria dinheiro o bastante para comprar um fazenda e só então sairia daquele inferno.
Abriu a porta e tudo lhe pareceu estranhamente misterioso. Se os homens estivessem realmente se divertindo com as garotas, ouviria gritos de prazer e música brega em alto volume.
Também era estranho que as ruas estivessem vazias.
Ao dobrar uma esquina, mal pôde acreditar em seus olhos: um de seus homens estava sendo imobilizado por uma mulher. Não, não era nem mesmo uma mulher. Era antes uma garota, de no máximo 17 anos. Era alta, não muito alta. À luz do luar seus cabelos curtos e lisos pareciam loiros, mas André concluiu que eram provavelmente castanhos. Estava vestida com uma espécie de armadura de ouro, com motivos indígenas e penas coloridas.
O feitor não esperou por explicações. Dando um grito que paralisou a menina, ele avançou a passos largos e a agarrou. Agora que tocava em seu corpo, a menina parecia ainda mais frágil. Seus seios mal apareciam abaixo da roupa. André tentou imaginar como ela havia sido capaz de imobilizar um homem. Mas não gastou muito tempo com considerações. Havaí movimento mais à frente. Levando a moça consigo, ele se aproximou da casa em que ficavam presas as mulheres. O que viu o espantou definitivamente. Várias mulheres vestida como a menina libertavam as prostitutas, enquanto os homens, peões fortes, acostumados com serviço pesado, jaziam pelo chão, entre gemidos de dor.
- Parem! – gritou André. Vão todas para a casa, ou eu quebro o pescoço da menina!
As mulheres paralizaram, sem saber o que fazer. Algumas prostitutas fizeram menção de voltar, mas desistiram.
Uma das guerreiras deu dois passos à frente.
- Largue a menina! – ordenou ela, segurando uma enorme borduna.
- Se der mais um passo, eu a mato. – ameaçou a feitor.
Ficaram os dois parados, olhando um nos olhos do outro. Durou um minuto, mas pareceu uma eternidade. Os dois gigantescos antagonistas se estudavam, como num jogo em que os dois jogadores têm medo de fazer o primeiro lance.
De repente os olhos do feitor se arregalaram. Alguém estava segurando seu pescoço. Houve, em seguida, um som de osso quebrado. O homem desabou, como um saco que perde a sustentação. Sua coluna estava quebrada.
Atrás dele, uma índia vestida de rainha permanecia impassível.

A menina e a Rainha olhavam o nascer do sol.
- Desculpe, mãe, por ter colocado a missão em perigo. – murmurou a moça.
A mulher a abraçou.
- Oh, meu bebê... não se desculpe. Em nenhum momento perdemos o controle. Você ainda é nova, está aprendendo...
- O que vai acontecer com as mulheres que libertamos?
- As que quiserem voltar para casa, serão levadas até a cidade mais próxima, onde serão encaminhadas para suas famílias. Mas a maioria não tem para onde voltar. Algumas são órfãs... outras foram vendidas por suas próprias famílias... essas vão conosco e se tornarão guerreiras.
- Mãe, quando vou participar de uma nova missão?
- Em breve, muito em breve. Agora, vamos voltar para casa...

EPISÓDIO 1 – UMA VELA SOB A CAMA


Naquele dia, Marcos acordou estranho. A realidade parecia bizarra, como se ele tivesse tomado algum tipo de alucinógeno. Quando se levantou, percebeu que estava com uma dor de cabeça terrível. Para piorar, o vizinho tinha colocado o rádio no volume máximo.
Marcos foi até o banheiro, tomou banho, molhando bastante a cabeça, na esperança de aliviar a cefaléia, mas a dor só aumentava e o som do vizinho parecia cada vez mais alto. Voltou para o quarto com a toalha enrolada na cintura, desligou o ar-condicionado e colocou a roupa lentamente, como se qualquer movimento brusco pudesse piorar as coisas.
Sua mulher estava na cozinha, terminando de preparar o café.
- Oi querido. – cumprimentou ela com um sorriso. Tudo bem?
- Não. Acordei com uma dor de cabeça terrível... e esse vizinho não abaixa esse rádio...
- Que rádio?
Marcos olhou para ela como se olhasse para um palhaço e tentasse descobrir se ele estava tentando ser engraçado ou não.
- Como assim, que rádio?
- Eu não estou ouvindo nada.
- Surdez é um problema sério...
Seu braço bateu na xícara e ela caiu no chão, quebrando em mil pedacinhos que pareciam reluzir, refletindo a luz da lâmpada.
- E cegueira é pior ainda. – rebateu Cristina, mas logo percebeu que algo sério estava acontecendo.
Marcos abaixou-se para recolher os cacos.
- Desculpe, é essa dor de cabeça...
A mulher adiantou-se a ele, pegando a pá e uma vassoura.
- Deixa que eu limpo... tem certeza de que pode ir trabalhar? Não quer tirar o dia de folga e aproveitar para ir ao médico?
- Não. Não é nada. Já vai passar.
- Vocês homens acham que são super-homens. Só começam a se cuidar quando estão para morrer...
Marcos ouviu o comentário em silêncio, enquanto tomava café com biscoitos.
Separaram-se no portão. Cristina trabalhava em uma escola e ele em um banco. Em locais diferentes, ônibus diferentes.
No ônibus, o som do rádio parou, mas alguém estava mascando chiclete e fazia um barulho escandaloso com a boca. Marcou olhou à volta, esperando que alguém se manifestasse contra o mal-educado, mas ninguém dizia nada. Era como se não estivessem ouvindo o barulho alto que alguém estava fazendo com a boca...
No banco a dor diminuiu um pouco, mas o barulho o deixava irritado e assustado. Era o slap slap mecânico de alguém contando dinheiro, era alguém com sarna, cuja coceira fazia barulho como uma lixa...
Um homem na fila estava vestido de preto e de óculo escuros. Ele ajeitava os óculos e isso era um barulho irritante. Na hora em que ele se aproximou e entregou a conta para pagar, as mãos dos dois se tocaram. Foi como um pequeno choque. No mesmo momento, Marcos ouviu uma voz: “Tudo pronto para o assalto?”.
Ele olhou à volta, tentando identificar a origem do som, mas não era ninguém no banco. Olhou para os outros caixas ninguém parecia ter ouvido. De onde saíra aquela voz? Instintivamente, ele apertou o botão de alarme abaixo do balcão e, ao mesmo tempo, chamou o gerente. O cliente vestido de preto olhava-o, intrigado.
- O que foi? – perguntou o gerente.
- Uma intuição. Peça para os seguranças redobrarem o cuidado.
- Você virou mãe Diná? Está vendo alguém suspeito?
- Não, mas faça o que eu disse.
- Está bem. Se isso deixa você mais calmo, vou falar com os seguranças...
Uma velhinha entrou pela porta lateral, carregando uma sacola. Dali a pouco três homens entraram pela porta giratória e se aproximaram dela. Já iam tirando as armas da sacola quando o vigia encostou a pistola na nuca de um deles.
- Quietinho aí. – disse o vigia. E você aí, vovó: coloque a sacola no chão, bem devagar.
A velhinha se abaixou lentamente e depositou a sacola no chão. Um dos bandidos ainda tentou se abaixar para pegar a sacola, mas foi atingido por um tiro vindo de outro vigia. Os outros talvez fossem resistir, mas desistiram quando ouviram as sirenes.
Na hora do almoço, os outros congratulavam Marcos:
- E aí, rapaz, conta como você desconfiou do assalto.
- Sei lá, não dá para explicar...
- Está se fazendo de estrela...
Marcos riu e continuou a comer. A dor de cabeça tinha passado quase que completamente e os ruídos já não o incomodavam tanto.
À tarde, quando voltava para casa, ele passou por uma igreja e, por algum motivo, resolveu entrar. Não era católico ou religioso, mas a igreja estava vazia e ele precisava de paz. Sentou-se num banco na frente do altar e rezou uma oração sem palavras. Os últimos acontecimentos rodopiavam em sua mente, como um turbilhão.
Então, uma voz masculina sussurrou dentro de sua mente:
- Não se acende uma vela para colocá-la sob a cama.
Um arrepiou percorreu seu corpo e ele sentiu uma presença à sua esquerda.
- Aqueles que estavam perdidos serão achados. – murmurou uma voz feminina em sua mente.
Um novo arrepio o percorreu e ele sentiu outra presença no seu lado direito.
- O que aconteceu hoje é apenas uma amostra dos talentos perdidos e encontrados.
Uma parte de Marcos dizia que era só imaginação, criação de sua mente, mas outra parte sentia que era verdade.
Então as vozes pararam, mas ele sentiu como se não estivesse sozinho na igreja.