10/23/2007

OS ANJOS
EPISÓDIO 12 – MEMORIAL DE UM QUASE MORTO

Para Gogol

Manuel não conseguia morrer.
Sua vida era uma tristeza só. A mulher o abandonara chamando-o de idiota. Ele perdera o emprego de anos, pois disseram que ele estava velho demais para trabalhar... mas era novo demais para se aposentar. Ele não tinha amigos e passava os dias e noites sozinho, vivendo de pequenos bicos e odiando-se por assistir a programação idiota da TV.
Mas nada disso importava. Tudo estaria bom e certo se ele, ao menos, pudesse morrer.
Ele não estava doente. Tinha uma gripe aqui e outra ali, mas nada que pudesse matá-lo. Infelizmente.
Assim, se ele pretendia dar fim aos seus dias de sofrimento, teria de agir por conta própria. Não podia esperar que a morte lhe caísse ao colo, assim, de mão beijada. Era necessário agir. Então ele pagou suas dívidas, arrumou a casa, tomando cuidado para que tudo estivesse em seu lugar, abriu a janela e pulou.
Dizem que se morria antes mesmo de alcançar o chão, mas mesmo que isso não fosse verdade, a queda do décimo andar deveria ser o suficiente para terminar o serviço.
Sim, era uma morte certa e garantida. Entretanto, antes que o medo ou a queda o matassem, algo fez com que seu corpo parasse. Depois continuou descendo lentamente, em contraste com a aceleração constante e devastadora de antes.
Seus pés tocaram o solo e Manuel olhou para trás. Havia um homem ali, um salvador. Era um homem alto, vestindo uma espécie de capote de lã, um capuz cobrindo sua cabeça de tal forma que, sob a luz do poste, seu rosto era encoberto por sombras.
- Cuidado, vovô... uma queda dessas poderia matá-lo! – disse o desconhecido e voou, desaparecendo na noite.
Vivo. Manuel estava vivo, apesar de só desejar estar morto. Mal livrou-se de sua primeira tentativa frustrada de suicídio, já pensava na segunda.
Talvez fosse melhor morrer de uma maneira mais privada, no conforto do lar e sem ninguém para atrapalhar.
No dia seguinte, ele comprou fita adesiva plásticos. Assim que a noite caiu e o som dos apartamentos cessou, indicando que a maioria dos moradores já estava dormindo, ele lacrou portas e janelas e ligou o gás.
Os vapores se avolumaram no ar, numa nuvem infecta e venenosa.
Manuel sentou em uma cadeira de balanço na sala e esperou que a morte viesse.
Mas ela não veio. Em seu lugar, o som de uma janela estilhaçada.
Era de novo ele, o homem de capote e capuz. Meio inconsciente, Manuel lembrou de ter visto algo sobre ele na TV. Os repórteres o chamavam de Anjo, mas um anjo era tudo que ele não queria.
Anjo ou quem quer que fosse, abriu as janelas, desligou o gás e ligou para o hospital, chamando uma ambulância.
- Não se preocupe, vovô, eles vão salvá-lo. – disse antes de sair voando pela janela.
Manuel não queria ser salvo. Tudo que queria era morrer em paz. Será que era um desejo tão difícil de ser realizado?
O pobre velho passou dois dias internado e, quando saiu, estava decidido a mudar de tática. Talvez o melhor não fosse premeditar. Talvez a sua situação exigisse uma atitude firme e inesperada.
Assim, na primeira esquina movimentada, ele se jogou na frente dos carros. Achou que tinha morrido, mas só estava voando. Não precisou olhar para cima para saber que estava sendo carregado por um homem de capote e capuz.
- Poxa, vovô, tome cuidado ao atravessar a rua. Só atravesse no sinal fechado verde, ok?
Quando saiu voando, Manuel já tinha desistido da idéia de morrer. Não adiantaria enquanto aquele homem voador estivesse vivo. Manuel não poderia suicidar enquanto ele estivesse vivo. Mas talvez isso tivesse jeito...