3/19/2006



OS ANJOS
EPISÓDIO 4 – SETE HORAS

Eram sete horas da manhã.
Ele acordou com a mãe sacudindo-o e dizendo que ele se atrasaria para a escola.
Eram sete horas da manhã.

* * *

O homem tirou a venda e as trevas que enchiam seus olhos se transformaram em luz, mas isso não alegrou Cristina. Ela tentou falar, gritar por socorro, mas uma fita adesiva em sua boca só lhe permitia alguns gemidos.
Cristina estava sentada em uma cadeira de madeira, as mãos amarradas ao encosto.
Acostumando seus olhos à claridade, ela olhou à volta, tentando se situar. Percebeu que estavam em uma espécie de porão. Não havia janelas, apenas uma porta, logo à sua frente. O chão era de madeira envernizada, velha, mas em bom estado.
Um cheiro forte e decrépito tomava o ambiente.
Uma lâmpada incandescente, acima de sua cabeça, era a única iluminação.
Olhando para um dos lados do porão, ela viu seu raptor e teve um calafrio. Era um homem calvo, vestido de preto, com óculos escuros. Não tinha sombrancelhas e seus lábios eram muito finos e brancos, como se não corresse sangue em seu corpo. “Talvez ele esteja morto”, pensou. Mas ele estava vivo e sorria para ela um sorriso estranho, demoníaco.
Do outro lado, havia uma cama. No lugar do colchão, um estrado de faixas de borracha entrelhaçadas. Amarrada sobre a cama estava uma mulher loira, de cabelos anelados desalinhados e longos. Estava nua e sua pele estava branca como se há muito tempo não visse o sol.
Ao pé da cama, presa a uma coleira e uma corrente fixada na parede, estava outra mulher, de quatro. Tinha traços orientais e cabelos pretos muito curtos, mas cortados por um cabeleireiro inábil. Também estava nua e sua pele era ainda mais branca que a da outra.
- Seja bem vinda à sua nova casa. – disse o homem de preto, e seu sorriso se tornou ainda mais doentio.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele colocou as calças com os olhos fechados e quase dormiu de novo enquanto calçava as meias.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos ficou alguns segundos estático, parado com o papel na mão: VOCÊ NÃO SABE ONDE ESTÁ A SUA MULHER.
Suas mãos crisparam contra o papel, amassando-o e transformando-o em uma bolinha. Então jogou-o no chão e se afastou dele como se estivesse contaminado. Foi andando de costas, na direção da porta, as lágrimas escorrendo de seu rosto.
Quando chegou ao quintal, alçou vôo, gritando como um louco. Ficou lá em cima, rodopiando entre as nuvens e gritando.
Depois começou a voar em desespero por todos os locais, rastreando os sons na tentativa de encontrar sua esposa, até perceber que isso era inútil.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele usou o tato para amarrar o cadarço dos sapatos enquanto a mãe se despedia dele e saía pela porta.
Eram sete horas da manhã.
* * *
O homem parou de sorrir e olhou para as duas mulheres nuas.
- Deixe-me apresentá-la a suas novas colegas. Vocês passarão muito tempo juntas. São as minhas cachorrinhas, e você logo será também.
Ele se aproximou das mulheres e, abaixando o tronco, acariciou a cabeça da mulher no chão. Ela fez-lhe festas e lambeu sua mão.
- Esta é Sereia. As pessoas do interior gostam de batizar seus cachorros com nomes marinhos como forma de prevenir contra a hidrofobia. Eu gosto disso, acho poético, não é mesmo, Sereia?
A mulher respondeu com um som que parecia um latido.
- Eu capturei Sereia há cinco anos e levei mais de dois anos para domesticá-la. É um trabalho lento, de condicionamento. Demorado, mas compensa. É preciso muito cuidado, inclusive com a saúde. Devo compensar a falta de sol com vitaminas, mas isso não impede a brancura da pele. Seria, de fato, um inconveniente, se eu não gostasse assim.
Ele ficou novamente ereto, sentou no estrado da cama e tocou na mulher que estava amarrada. Ela afastou a perna com repugnância, como se tivesse sido tocada por uma cobra.
- E esta é Pérola. Eu há capturei há um ano e ela está em treinamento. Ela fica amarrada o tempo todo, mas eu a solto uma vez ao dia para que ela se acostume a andar de quatro e, ao mesmo tempo, se exercite. Pérola é um pouco arredia e seu treinamento vai durar muito. Talvez eu me canse dela antes disso e faça com ela o que fiz com as outras. Você pode sentir o cheiro? Pode ouvir os ossos estalando? Elas estão aí, embaixo de você. Aquelas que me desobedeceram...
E o homem de preto olhou para o chão debaixo da cadeira.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele lavava o rosto quando ouviu um guincho fino, como de borracha sendo arrastada por uma superfície sólida e áspera. Depois o grito de uma mulher e o som seco de ossos se quebrando. A voz de sua mãe.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos aterrissou no quintal de sua casa e entrou pela porta da frente, que havia ficado aberta. Penetrou na sala e deparou-se com uma foto de Cristina acima da televisão. Aproximou-se e tocou-a com o dedo, cuidadosamente, como se lidasse com algo extremamente frágil, capaz de quebrar ao menor toque.
Depois, foi para a cozinha e pegou o papel amassado no chão. Abriu-o lentamente, tateando-o, tentando encontrar alguma pista tátil. Todos os seus sentidos concentravam-se no papel, à procura de algo e foi o seu nariz que encontrou algo estranho. O cheiro. Que cheiro era esse?
Marco levou o papel ao nariz, aspirou profundamente e em seguida afastou o papel, enojado. Fedor.
Que tipo de fedor? Lixo? Fezes?
Cortume.
Era isso. Cortume. Onde já Marcos já sentira esse cheiro antes? Procurou na memória.
Sua mãe. Ônibus. Fedor. Cortume.
Um dia, ele tinha oito anos, estavam no ônibus. Ele sentiu o fedor e tapou o nariz. Sua mãe lhe explicou que era o cheiro do cortume e que aquela era a rua do Cortume.
Rua do Cortume.
Marcos procurou um mapa. Rua do Cortume. Lá estava ela. No bairro do Cortume.

* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele saiu de casa correndo e atravessou a rua, o rosto molhado de água e lágrimas.
Eram sete horas da manhã.

* * *
O homem de preto se deitou sobre a mulher loira e violentou-a. Ela tentava gritar, mas era impedida por uma mordaça de couro que cobria sua boca e seu queixo.
Quando terminou, ele se levantou e deixou a mulher chorando sobre a cama. Então andou até a prateleira do outro lado do porão e pegou uma faca.
- Você deve estar se perguntando por que ainda não fiz nada com você. – disse ele, aproximando-se de Cristina. Sabe por quê? Porque quero primeiro capturar seu marido. Quero que ele veja tudo que vou fazer com você.
Os olhos de Cristina se arregalaram. Ele aproximou o faca de sua blusa e usou-a para arrancar, uma a um, os botões de sua blusa. Depois cortou os sutiã e os seios saltaram. Então Cristina sentiu o gume frio da faca passeando por seus seios e roçando em seus mamilos.
-Ele é uma pessoa especial e por isso terei um prazer especial em captura-lo. Oh, sim! Eu me esqueci! Você ainda não sabe sobre os dons de seu marido... você ainda não sabe que ele pode ouvir mais e melhor que qualquer pessoa, que pode ver como uma águia, pode sentir texturas e sabores melhor que você poderia imaginar. E ele descobriu recentemente que pode voar. Como sei disso? Vamos dizer que também tenho minhas habilidades. Ao focar uma pessoa, eu posso sentir um pouco de seu passado, presente e futuro. Eu estava na fila do banco quando houve o assalto e sei que foi seu marido que impediu o assalto. Entenda, eu só precisei juntar as peças...seu marido é um escolhido, um homem com habilidades especiais... como eu... e, o que é melhor, tem uma linda esposa...
O homem de preto levantou a faca e passou-a pela face de Cristina.
- Você deve estar pensando: se meu marido tem mesmo essas habilidades, ele irá me salvar. Vai descobrir onde estou e vai me salvar como o príncipe encantado que salva a princesa prisioneira do dragão. Mas eu tenho más notícias. Isto não é um conto de fadas... e o dragão é mais esperto que o príncipe. Eu posso sentir ele chegar. E posso me antecipar a cada ação dele. Aliás, posso senti-lo agora. Ele está chegando. Está caindo em minha armadilha!
* * *
Eram sete horas da manhã.
Várias pessoas se amontoavam ao redor do corpo. Uma mancha rubra se alastrava pelo asfalto. Ela ainda respirava.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos percorreu voando o caminho entre sua casa e a Rua do Cortume e ficou lá em cima, rastreando as casas até ouvir a voz de sua esposa gritando por socorro.
Era uma casa velha, isolada entre o cortume e um terreno baldio.
Marcos passou por uma varanda e aproximou-se da porta, pronto para arrombá-la, quando percebeu que ela estava aberta.
A porta abriu com um rangido e Marcos ouviu um murmúrio em sua cabeça: “Cuidado”.
Deu um primeiro passo e a madeira velha gemeu sob os seus pés. A voz de sua esposa, chamando por socorro continuava forte à sua frente. Um novo passo e a madeira tornou a gemer. Estava em uma sala ampla. A voz de sua esposa vinha de uma mesa, mas não havia ninguém lá.
Olhando à sua volta, ele se aproximou da mesa. Era um gravador.
Marcos apertou o stop e os pedidos de socorro cessaram. Então girou ao redor de si mesmo, os ouvidos atentos para qualquer barulho.
Um homem falando.
Onde?
Abaixo de seus pés.
A casa devia ter um porão. Marcos andou por ela, procurando a entrada. Encontrou-a na cozinha: um estreito corredor com uma escada e, no final dela, uma porta. “Não vá, não vá”, dizia a voz em seu ouvido, mas ele desceu. A madeira rangia e estalava sob seus pés. Seus ouvidos estavam atentos. O homem tinha parado de falar. Onde estaria?
Marcou abriu a porta e entrou. Viu sua esposa amarrada e amordaçada em uma cadeira e foi a última coisa que viu. Sentiu o impacto de algo duro na testa... depois dor... e então ficou tudo escuro.
* * *
Eram sete horas da manhã.
Ele tinha certeza de que ela iria sobreviver e afagava seus cabelos manchados de escarlate, mas ela deu seu último suspiro.
Eram sete horas da manhã.
* * *
Marcos acordou desnorteado. Onde estava? Por que tudo estava tão escuro? Aos poucos, a memória foi voltando e ele percebeu que estava caído no chão. A visão demorou mais a voltar e a primeira coisa que ele viu foi o rosto de um homem calvo de óculos escuros e sorriso sarcástico.
- Não pensei que fosse tão fácil. Achava que ia me divertir um pouquinho... vamos, levante-se, seu idiota, levante-se!
Marcos se jogou sobre ele, mas o homem de preto desviou.
Com muito esforço, Marcos se levantou. Seu olhar estava embaçado, mas mesmo assim ele voou sobre o homem, que desviou no momento exato e, pegando-o pelo pé, jogou-o contra a parede.
- Vamos, me ataque! Salve sua linda esposa! Venha, seu idiota!
Marcos se levantou novamente e ficou frente a frente com seu antagonista. Tentou pegá-lo de surpresa com um soco, mas o homem desviou com facilidade, até que seu rosto foi tomado por uma expressão de dor. Ele podia antecipar cada movimento de Marcos, mas não podia prever o chute que Cristina lhe daria entre as pernas.
Marcos aproveitou o momentâneo desnorteamento do homem de preto e desferiu-lhe um golpe na cabeça. Com o impacto, ele caiu de costas no chão e Marcos caiu sobre ele, desferindo socos. Os óculos escuros quebraram e revelaram olhos azuis muito claros.
Marcos pegou-o pelas orelhas e bateu sua nuca no chão até que ele parasse de se mexer. Então se levantou e começou a chutar o homem entre as pernas e nas costelas.
Quando se cansou, foi até a esposa, ajoelhou-se, tirou a mordaça de sua boca, e abraçou-a, chorando. Choraram os dois juntos, beijando-se entre lágrimas.
Então ele se levantou e desamarrou-a. Em seguida foi até a mulher nua na cama e também a libertou. Ela olhou para as próprias mãos, não acreditando que estava livre.
A mulher no chão foi libertada da coleira, mas não se levantou. Ao contrário. Foi de quatro até o homem e preto e cheirou-o.
- Ele está...? – perguntou Cristina.
- Não. Apesar de merecer morrer, ele vai sobreviver. Agora vamos embora.
Cristina apontou para as mulheres.
- E elas?
- Vamos chamar as autoridades. Elas precisam de mais ajuda do que podemos dar.
Foram andando até a varanda. Depois Marcos levou-a voando para casa.

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