5/28/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 9 – O HOMEM QUE SABIA DEMAIS

Érico era uma dessas pessoas que chamavam atenção por sua total ausência de predicados. Pequeno e magro, não havia nada em sua aparência que pudesse parecer um atrativo para as mulheres. Entretanto, ele se dava bem com elas. Tinha uma lábia, um carisma especial que parecia enfeitiçá-las.
Naquela noite, por exemplo, ele estava acompanhado por dois belos exemplares do sexo feminino: uma garota morena de cabelos anelados e longos, seios grandes e lábios carnudos. A outra era igualmente bonita. Tinha o cabelo liso, pintado de ruivo, cortado à Chanel. A pele era branca, muito branca e macia e pequenas sardas se avolumavam em seu peito. O trio chamava atenção pelo inusitado do contraste: ele baixo e inexpressivo, elas altas e exuberantes.
Ficaram lá por um bom tempo e já era alta madrugada quando resolveram ir embora.
Havia dois homens esperando por eles do lado de fora. Ambos musculosos, os trícepes tatuados em motivos tribais. O mais baixo deles assoviou para as meninas:
- Ei, gostosas!
Como nem elas, nem seu companheiro parecessem dar atenção, ele repetiu a frase, numa entonação mais agressiva.
Érico parou e olhou-o.
- O que foi, rapaz? Não gostou? Talvez queira brigar comigo...
- Não vejo motivo para brigar com você, mas aconselho-o a ser mais educado com as mulheres. Já conquistou alguma assim?
- Você está me chamando de otário?
Érico olhou para cima, como que clamando por ajuda.
- Eu não o chamei de nada, apenas dei uma sugestão. Minhas sugestões são valiosas. Se eu fosse você, aproveitaria.
- Tu é muito engraçadinho! Vou quebrar as tuas fuças. – ameaçou o outro.
- Você quer provar que é macho batendo em alguém muito mais fraco que você? É isso? Talvez as meninas gostem de ver o quanto você é macho batendo em um cara como eu...
- Se tu é macho, vem brigar comigo!
O rapaz dava pequenos pulinhos ameaçadores, como se estivesse num ringue e desferia pequenos golpes no ar. Alguns chegavam muito próximos de Érico, que, no entanto, permanecia impassível.
- Não acho que minha masculinidade possa ser testada em uma contenda desse tipo. Sinto decepcioná-lo. Meninas, vamos embora.
Os três se viraram e já iam se afastando quando o outro se adiantou e colocou-se à frente deles.
- Você não vai sair assim, depois de ter tirado sarro de mim.
- Ei, Bad Boy, deixa o rapaz em paz. Ele não quer briga. – interveio o rapaz mais alto e forte.
- Não, Panturrilha. Hoje ele só sai daqui numa ambulância!
- Sim, talvez você resolva me bater. Mas talvez, se você fizer isso, e é apenas uma conjectura, talvez amanhã você esteja morto.
- O que tu quer dizer com isso?
- Quero dizer que talvez eu saiba onde você compra seu açaí... talvez eu saiba onde você faz musculação...
- E daí?
- E daí que existem venenos incolores e inodoros.
- Inodoros? Que merda é essa?
- Quer dizer que você só vai sentir o gosto quando estiver morto...
- Tu tá me ameaçando? Eu vou te matar e vamos ver o que você vai fazer no caixão.
- Sim, talvez eu, estando morto, não possa fazer nada. Mas talvez eu já tenha deixado tudo pronto para que você me faça companhia no cemitério. Você jamais teria paz, sabendo que a qualquer momento algo poderia lhe acontecer. Poderia ser alguém que derrubasse você na frente de um carro. Ou poderia ser, vamos ver... talvez um choque elétrico quando você estivesse tomando banho. Eu gostaria disso. Você conseguiria dormir com essa dúvida? Conseguiria, Júlio?
- Ei, como você sabe meu nome?
- Bad Boy, vamos embora. – insistiu o outro.
- Como você sabe meu nome? – o rapaz insistiu. Havia já alguma apreensão em sua fala.
- Talvez eu só tenha chutado. Ou talvez eu saiba não só o seu nome, mas a hora em que você sai de casa, onde você estuda, o que você gosta de comer. Talvez eu até saiba sobre vocês dois...
Bad Boy e Panturrilha se entreolharam, nervosos.
- Quem te disse isso, quem mais sabe?
- Talvez a mesma pessoa que me disse que seu nome é Júlio Augusto Pereira.
- Talvez a mesma pessoa que me disse que seu amigo se chama Rodrigo. Talvez a mesma pessoa que me disse onde vocês costumam se encontrar...
- Eu vou quebrar as tuas fuças! – berrou Bad Boy.
- Espera, como ele sabe dessas coisas? Ninguém mais sabe. Cara, eu não estou gostando disso, é melhor a gente ir embora...
Érico olhava e ria com o canto dos lábios. Apesar de menor e muito mais magro, ele parecia olhar para os dois de cima para baixo.
- Talvez eu saiba exatamente o que fazem e como seria a melhor forma de matá-los. Rodrigo, talvez você se lembre de um dia, você devia ter uns 6 anos, acho. Creio que havia uma geladeira enferrujada...
- Pára! Bad Boy, vamos embora, pelo amor de Deus!
- Vamos, vão em frente, me batam. Eu adoraria matá-los. Veneno, talvez. Ou talvez uma doença infecciosa. Oh, sim, isso seria melhor. Bastaria infectar um dos dois... muito mais prático. Tenho más notícias para você, meu amigo: eu sei o creme dental que usam, sei a marca de seu desodorante, sei que você sempre gargareja antisséptico bucal antes de dormir e que seu amiguinho aí lava as mãos com álcool ante de comer. Sei que você está fazendo um tratamento de canal em um molar, sei que você tem hora marcada com o dentista amanhã à tarde. Ei, vocês estão pálidos! Vamos, sigam em frente. Mostrem o quanto são machos!
Os dois pareciam estar tremendo. Foram reveladas coisas sobre eles que poucas pessoas sabiam. Panturrilha deu dois passos para trás e puxou o amigo, que não ofereceu resistência. Logo os dois estavam correndo como se tivessem visto lobos.
- Bem, meninas, vejam dois belos exemplos do sexo masculino...Agora, venha comigo. A noite ainda é uma criança...

5/07/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 8 – ONDINA


Eu a peguei nos braços e a levei para a área portuária. Enquanto voávamos, seus cabelos ondulavam como maresia.
Ficamos sentados na beira do rio, observando a água bater contra o muro de sustentação.
- Como começou? – perguntei, depois de um longo e constrangedor silêncio.
Ela me olhou com olhos marejados.
- Eu me casei muito jovem. Tinha 17 anos. Estava grávida e era a única saída que tinha. No começo, meu marido era carinhoso comigo, mas com o tempo algo mudou. Ele voltava do trabalho cada vez mais tarde e cada vez mais cheirando a álcool. Um dia reclamei... e ele me bateu.
Lágrimas inundaram seu rosto. Ela enxugou as lágrimas e continuou.
- Eu perdi a criança. Depois disso, o nosso relacionamento nunca mais foi o mesmo. Eu tinha asco dele e o culpava pela morte de minha filha. Um dia ele tentou me violentar. Eu o empurrei e ele bateu a cabeça na parede. Nunca o vi tão fora de si. Se eu fechar os olhos, consigo visualiza-lo, seus olhos vermelhos, posso sentir seu bafo de cachaça, sua respiração ofegante...lembro de sua voz rouca, dizendo que eu iria pagar... ele foi até a cozinha e eu ouvi barulho de vidro. Quando voltou, trazia na mão uma garrafa partida. Ele ia me matar, cortar minha garganta com vidro e ficaria ao meu lado, me olhando e vendo a vida se esvair do meu corpo...
Novo silêncio. Ela engolia em seco, agora segurando as lágrimas. Olhou algum tempo para as águas antes de começar a falar. Seu olhar agora era determinado como a preamar.
- Por alguma razão eu achei que deveria morrer cantando. Talvez fosse uma demonstração de força, ou um grito de desespero, mas o fato é que eu cantei. Cantei com todo o meu coração. Algo estranho aconteceu, então. Sua mão parou a meio caminho de minha garganta. Ficou naquela posição por horas, até a polícia invadir o apartamento. Eles me encontraram encolhida em um canto, murmurando melodias. Meu marido não conseguia nem mesmo falar. Foi levado para um hospício e, se Deus quiser, vai morrer lá.
- E com você? Como você se saiu?
- Foram os piores e os melhores anos de minha vida. Eu estava sozinha no mundo, sem marido ou família, pois não queria voltar para meus pais. No começo foi bem difícil para uma moça inexperiente como eu arranjar emprego, mas consegui e voltei para a escola. Com muito esforço, passei no vestibular e arranjei um emprego melhor. Quando achei que minha vida estava encaminhada, comecei a pensar nas outras mulheres que sofriam como eu. Sabe, quando tive o aborto, todos no hospital, médicos e enfermeiros, sabiam que eu havia sido espancada, mas ninguém fez nada. Eu queria fazer a diferença, queria fazer alguma coisa por essas mulheres esquecidas e sozinhas...
- Então começou a fazer a ronda noturna?
- Sim.
Continuamos conversando por um bom tempo e eu lhe contei sobre minha vida. Depois me ofereci para leva-la para casa, mas ela recusou. Queria aproveitar a caminhada até casa para fazer uma ronda.
Cristina estava dormindo quando cheguei em casa. Eu beijei sua barriga e deitei ao seu lado, mas não consegui dormir. Sonhei com a mulher de cabelos dourados.