8/06/2006

OS ANJOS
EPISÓDIO 10 – O FANTASMA DA LOJA DE CONVENIÊNCIA


Marcos e Cristina estavam jantando e ouvindo música quando ouvir bater à porta.
Marcos se levantou ainda mastigando um pedaço de ovo frito com farinha e abriu a porta. Havia um homem lá. Era calvo, os cabelos grisalhos. Devia ter uns 50 anos ou mais – talvez mais. Usava uma camisa de manga curta, os botões pressionados, ameaçando estourar sob a pressão da barriga proeminente.
- Quem é, querido? – perguntou Cristina, sem se levantar da mesa.
Marcos ia responder “Não sei”, mas ficou em silêncio, esperando que o estranho se manifestasse.
O homem calvo abriu os braços, como se esperasse um abraço.
- E então? Não reconhece mais o seu pai?
Pai? A palavra ecoou na mente de Marcos. Não se lembrava de um pai. Suas lembranças mais antigas eram dele e sua mãe, juntos e sozinhos. Pai? Todos tinham um pai, claro, ele sabia disso. Sua mãe lhe dera uma explicação qualquer, mas quando cresceu o bastante para pensar no assunto, Marcos percebeu que ele e sua mãe haviam sido abandonados. Pai? Suzana sempre fora mãe e pai para ele. E, de certa forma, ele criara em si mesmo uma parte de sua personalidade que exercia a função de pai.
- Pai?
- Eu te procurei durante anos e finalmente te encontrei, meu filho!
O homem se aproximou e abraço-o. Marcos recuou. Era como ser abraçado por uma lesma. Ou por um sapo.
- Meu filho, que bom poder te abraçar. Te procurei por tanto tempo...
Lá dentro vinha do rádio a voz de Raul Seixas:
“Eu é que não me sento num trono de um apartamento
Com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar,
Porque longe das cercas embandeiradas que separam quintais no cume calmo do meu olho,
que vê, assenta a sombra sonora de um disco voador”.
Cristina aproximou-se e olhou intrigada para a cena: um homem de meia idade, mas ainda bem conservado, abraçando seu marido, que exibia uma expressão mista de repulsa e timidez.
- Querido, quem é? – perguntou ela.
O homem calvo se aproximou a pegou em sua mão.
- Você deve ser a esposa dele. Puxa, é um prazer imenso. Olhe, você está grávida! Meu nome é Antunes, qual é o seu?
- Cristina, mas...
- Que emoção! Descobrir o filho e saber que vou ser avô...
Marcos estava atônito, sem saber o que fazer. Cristina abriu um sorriso:
- O senhor aceita um copo d’água?
- Um cafezinho, se não for incômodo...
- Se o senhor não se importar de tomar nescafé...
- Imagine! Não sou de cerimônias. Bebo qualquer coisa que tenha cafeína...
- Então sente-se que vou buscar.
Marcos reparou que ele tinha olheiras. “Ele toma café para ficar acordado”. O pensamento pulou de sua cabeça como um daqueles palhaços que saltam de caixas-surpresa.
- Então você... é meu pai... – disse, sentando-se à frente do homem.
- Não sei que história a sua mãe lhe contou. Ela deve ter dito que eu abandonei vocês, mas a verdade é que ela fugiu de mim e levou você junto. Ela sabia que a juíza ia me conceder a posse e não queria se arriscar.
Marcos vasculhou sua mente em busca de fatos que comprovassem isso, mas não encontrou. Aparentemente, ele e sua mãe moraram anos na mesma casa.
- Mas tudo é passado. Você não sabe o quanto estou feliz por encontrar você e sua linda mulher.
Antunes disse isso e sorriu para Cristina, que se aproximava com uma xícara de café fumegante.

* *
O pai de Marcos passou a morar com eles. Ou talvez essa não fosse a palavra mais adequada. A verdade é que ele passava todas as noites na rua. Dizia ser um boêmio, mas devia beber pouco, pois não voltava bêbado. O único sinal de que passara a noite em claro eram as enormes olheiras. E tomava café, muito café, por todo o dia. Dormia uma ou duas horas e estava bom. Precisava de pouco sono, desde que tomasse café.
Marcos também passava boa parte das noites fora. Estava interessado nos roubos às lojas de departamentos. Todas as noites, sobrevoava as lojas, os ouvidos aguçados, à procura de qualquer pista.
Certa noite pensou ouvir algo na loja Girassol. Pousou no teto e procurou uma entrada. Felizmente, havia uma clarabóia. Marcos entrou por ela.
Seus ouvidos captaram sons de passos no departamento de móveis e ele voou para lá a tempo de ver alguém sumindo na direção dos cabides de roupas. Marcos achou que seus sentidos o estavam enganando: o que quer que estava perseguindo não parecia ter braços ou cabeça. Era como se uma camisa vermelha e uma calça jeans tivessem adquirido vida própria e resolvido dar um passeio pela loja.
Era não só estranho, mas irreal e Marcos se perguntou se o fato de seus sentidos serem mais aguçados não o tornaram vítima de uma ilusão de ótica.
Mas e os passos? Ele continuava ouvir passos. Atordoado, Marcos avançou pelo departamento de roupas femininas e encontrou uma camisa vermelha, uma calça jeans e uma cueca jogados ao chão. Era como se as roupas tivessem desistido de seu passeio noturno. Mas os passos... os passos continuavam... para baixo.
Marcos foi até a escada rolante e flutuou até o andar de baixo. Roupas infantis. Ele passava pela seção de saias e vestidos quando foi atingido na nuca por algo. Seus pés despencaram no ar e sua cabeça bateu no chão.
- Quem está aí? Eu estou armado e vou atirar! – gritaram, ao longe.
É o vigia, pensou Marcos em meio à vertigem. Cambaleando, ele se elevou no ar e alcançou o andar de cima. Abaixo dele, o vigia avançava, barulhento como uma manada de elefantes. Não se parecia em nada com os passos sutis que ouvira anteriormente.
Apesar de estar flutuando, Marcos bateu o pé na quina de uma cômoda e desabou. O instinto o fez flutuar a poucos centímetros do solo, evitando um novo hematoma. Mas os sentidos continuavam estranhos e misturavam-se a uma perturbadora ânsia de vômito.
- Quem está aí? – gritou o vigia, já mais próximo.
Onde estava a saída? As imagens turvas misturavam-se com as lembranças das roupas andarilhas. Em seu delírio, Marcos imaginou que estava sendo perseguido por um batalhão de roupas sem corpo. Macacões rosas e botinhas ortopédicas misturavam-se a conjuntos de praia e ternos sociais, subindo pelas escadas, tentando alcançá-lo.
Marcos sacudiu a cabeça, tentando afastar os fantasmas e concentrar-se na saída.
- Estou avisando! Entregue-se ou vou atirar!
Marcos subiu pela clarabóia quando o primeiro tiro grunhiu abaixo dele. Pensou em ficar alguns momentos no telhado, recuperando-se, mas achou arriscado e voou sem rumo, rezando para não ser visto. Finalmente pousou no telhado de um prédio e ficou lá por quase meia-hora.

Um comentário:

Ivan Daniel disse...

Olá!
Acho que o serviço de comentários do teu blog Idéias do Jeca Tatu continua com problema.
Tentei enviar um comentário, como usuário do blogger, agora há pouco mas retornou pro meu e-mail.
Tentei enviar novamente sem estar 'logado' e aparentemente só está aguardando sua aceitação.
Verifica de novo se o problema continua.
Um abraço!