2/27/2006

EPISÓDIO 1 – UMA VELA SOB A CAMA


Naquele dia, Marcos acordou estranho. A realidade parecia bizarra, como se ele tivesse tomado algum tipo de alucinógeno. Quando se levantou, percebeu que estava com uma dor de cabeça terrível. Para piorar, o vizinho tinha colocado o rádio no volume máximo.
Marcos foi até o banheiro, tomou banho, molhando bastante a cabeça, na esperança de aliviar a cefaléia, mas a dor só aumentava e o som do vizinho parecia cada vez mais alto. Voltou para o quarto com a toalha enrolada na cintura, desligou o ar-condicionado e colocou a roupa lentamente, como se qualquer movimento brusco pudesse piorar as coisas.
Sua mulher estava na cozinha, terminando de preparar o café.
- Oi querido. – cumprimentou ela com um sorriso. Tudo bem?
- Não. Acordei com uma dor de cabeça terrível... e esse vizinho não abaixa esse rádio...
- Que rádio?
Marcos olhou para ela como se olhasse para um palhaço e tentasse descobrir se ele estava tentando ser engraçado ou não.
- Como assim, que rádio?
- Eu não estou ouvindo nada.
- Surdez é um problema sério...
Seu braço bateu na xícara e ela caiu no chão, quebrando em mil pedacinhos que pareciam reluzir, refletindo a luz da lâmpada.
- E cegueira é pior ainda. – rebateu Cristina, mas logo percebeu que algo sério estava acontecendo.
Marcos abaixou-se para recolher os cacos.
- Desculpe, é essa dor de cabeça...
A mulher adiantou-se a ele, pegando a pá e uma vassoura.
- Deixa que eu limpo... tem certeza de que pode ir trabalhar? Não quer tirar o dia de folga e aproveitar para ir ao médico?
- Não. Não é nada. Já vai passar.
- Vocês homens acham que são super-homens. Só começam a se cuidar quando estão para morrer...
Marcos ouviu o comentário em silêncio, enquanto tomava café com biscoitos.
Separaram-se no portão. Cristina trabalhava em uma escola e ele em um banco. Em locais diferentes, ônibus diferentes.
No ônibus, o som do rádio parou, mas alguém estava mascando chiclete e fazia um barulho escandaloso com a boca. Marcou olhou à volta, esperando que alguém se manifestasse contra o mal-educado, mas ninguém dizia nada. Era como se não estivessem ouvindo o barulho alto que alguém estava fazendo com a boca...
No banco a dor diminuiu um pouco, mas o barulho o deixava irritado e assustado. Era o slap slap mecânico de alguém contando dinheiro, era alguém com sarna, cuja coceira fazia barulho como uma lixa...
Um homem na fila estava vestido de preto e de óculo escuros. Ele ajeitava os óculos e isso era um barulho irritante. Na hora em que ele se aproximou e entregou a conta para pagar, as mãos dos dois se tocaram. Foi como um pequeno choque. No mesmo momento, Marcos ouviu uma voz: “Tudo pronto para o assalto?”.
Ele olhou à volta, tentando identificar a origem do som, mas não era ninguém no banco. Olhou para os outros caixas ninguém parecia ter ouvido. De onde saíra aquela voz? Instintivamente, ele apertou o botão de alarme abaixo do balcão e, ao mesmo tempo, chamou o gerente. O cliente vestido de preto olhava-o, intrigado.
- O que foi? – perguntou o gerente.
- Uma intuição. Peça para os seguranças redobrarem o cuidado.
- Você virou mãe Diná? Está vendo alguém suspeito?
- Não, mas faça o que eu disse.
- Está bem. Se isso deixa você mais calmo, vou falar com os seguranças...
Uma velhinha entrou pela porta lateral, carregando uma sacola. Dali a pouco três homens entraram pela porta giratória e se aproximaram dela. Já iam tirando as armas da sacola quando o vigia encostou a pistola na nuca de um deles.
- Quietinho aí. – disse o vigia. E você aí, vovó: coloque a sacola no chão, bem devagar.
A velhinha se abaixou lentamente e depositou a sacola no chão. Um dos bandidos ainda tentou se abaixar para pegar a sacola, mas foi atingido por um tiro vindo de outro vigia. Os outros talvez fossem resistir, mas desistiram quando ouviram as sirenes.
Na hora do almoço, os outros congratulavam Marcos:
- E aí, rapaz, conta como você desconfiou do assalto.
- Sei lá, não dá para explicar...
- Está se fazendo de estrela...
Marcos riu e continuou a comer. A dor de cabeça tinha passado quase que completamente e os ruídos já não o incomodavam tanto.
À tarde, quando voltava para casa, ele passou por uma igreja e, por algum motivo, resolveu entrar. Não era católico ou religioso, mas a igreja estava vazia e ele precisava de paz. Sentou-se num banco na frente do altar e rezou uma oração sem palavras. Os últimos acontecimentos rodopiavam em sua mente, como um turbilhão.
Então, uma voz masculina sussurrou dentro de sua mente:
- Não se acende uma vela para colocá-la sob a cama.
Um arrepiou percorreu seu corpo e ele sentiu uma presença à sua esquerda.
- Aqueles que estavam perdidos serão achados. – murmurou uma voz feminina em sua mente.
Um novo arrepio o percorreu e ele sentiu outra presença no seu lado direito.
- O que aconteceu hoje é apenas uma amostra dos talentos perdidos e encontrados.
Uma parte de Marcos dizia que era só imaginação, criação de sua mente, mas outra parte sentia que era verdade.
Então as vozes pararam, mas ele sentiu como se não estivesse sozinho na igreja.

Um comentário:

Ale disse...

Lindo texto. Parabéns!!!